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O rosto mais humano da fé
A herança teológica de Medellín 40 anos depois

Marcelo BARROS


 

Poucas organizações humanas sadias se referem a uma assembléia que completou 40 anos para dela tirar elementos atuais. Todos sabem que, de 1968 para cá, o mundo se transformou mais do que todas as mudanças que ele viveu em quatro séculos. Para se adequar às exigências do tempo, as instituições se transformam e se atualizam. Infelizmente, com a Igreja Católica na América Latina e Caribe, isso não é exatamente assim. Apesar de que, depois da 2ª conferência geral do episcopado latino-americano em Medellín (1968), já tivemos Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), a referência eclesiológica e afetuosa de muitos grupos eclesiais comprometidos com a transformação do mundo continua sendo Medellín.

Neste 26 de agosto, completam-se 40 anos em que o papa Paulo VI abriu a conferência de Medellín e indicou o rumo que ela deveria seguir. Agora, 40 anos depois, é normal que cristãos e estudiosos do tema se perguntem que herança permanece, hoje, da 2ª conferência geral do episcopado latino-americano e que relação existe entre a Igreja Católica da América Latina que, em 1968, foi capaz de fazer Medellín e os bispos que, no ano passado, realizaram a 5ª conferência do episcopado em Aparecida. Mais do que tudo, uma grande parte da humanidade quer saber se pode contar com as forças vivas da Igreja Católica e de sua hierarquia, como, de certa forma, contou a partir de Medellín, até meados da década de 70, para gestar juntos um mundo mais irmão e mais justo. Não me proponho aqui a refazer uma crônica histórica de Medellín, nem uma análise teológica de todos os seus pontos e princípios. Quero refletir sobre a herança de Medellín para a pastoral popular macro-ecumênica e para a Teologia Pluralista da Libertação.

 

1. O contexto histórico e eclesial de Medellin

Medellín foi um acontecimento de certa forma surpreendente e pioneiro. Não se pode dizer que tenha sido esperado e preparado para dar os frutos que deu. É claro que em 1968, o clima de abertura e diálogo com a humanidade que o papa João XXIII tinha iniciado com a humanidade ainda não tinha sido totalmente cerceado, como o Vaticano e seus aliados fizeram a partir da metade da década de 70. Também o ambiente de liberdade e criatividade provocado pelo Concilio Vaticano II ainda influenciava a bispos, padres e comunidades cristãs. Entretanto, a visão da maior parte dos bispos não tinha sido profundamente transformada. Era a velha visão de Cristandade católica, em um continente habituado ao colonialismo social, político e até religioso. Quem foi a Medellín e antes da conferência participou do Congresso Eucarístico em Bogotá pode confirmar isso.

A conjuntura do mundo em 68 era de revolução estudantil na Europa e movimentos de protesto em vários países. No continente latino-americano, a realidade era difícil e conflitiva. Vários dos nossos países, como o Brasil, já estavam imersos em uma cruel ditadura militar. Na Argentina, o grupo de “sacerdotes para o Socialismo” eram combatidos pelos militares e mal vistos pela hierarquia eclesiástica. No Brasil, a própria conferência episcopal, fundada pelo próprio Dom Hélder, o interrogava sobre suas viagens e alguns bispos declaravam suspeitar que as passagens aéreas de Dom Hélder fossem pagas pelo comunismo internacional.

No ano anterior a Medellín (1967), na Colômbia os militares assassinaram Camilo Torres e, na Bolívia, a CIA matou covardemente o comandante Che Guevara. Em todo o continente, cresciam os grupos cristãos convencidos de que o desafio maior para os nossos povos não era o desenvolvimento, porque este acabava sempre sem justiça. Desenvolver um sistema injusto é perpetuar a injustiça. O necessário era sim a libertação. Entretanto, na maioria dos países, só um ou outro bispo como Dom Hélder Câmara, no Brasil e alguns outros tinham a lucidez e a coragem de se colocar contra as ditaduras militares. Poucos pastores denunciavam as torturas e enfrentavam a ira dos militares. A maioria dos bispos preferia calar. E o papa pregava que os cristãos devem buscar uma evolução das coisas e não revolução. Medellín começou sob este clima. Somente à medida que as discussões se aprofundaram, o ambiente foi se abrindo e os bispos trataram de questões sérias do continente, da forma mais aberta e lúcida que se poderia imaginar.

 

2. Os temas e discussões em Medellín

Ao reler hoje o livro publicado com o discurso de introdução do papa, os discursos dos três cardeais presidentes da conferência e os textos emanados da assembléia (16 documentos)(1), o que fica claro é a tentativa de dar uma palavra eclesial para o mundo. Uma palavra sobre vários temas e problemas do mundo, mais do que da Igreja. É como se o sujeito do diálogo da conferência fosse muito mais amplo do que as comunidades católicas do continente: era o mundo e especificamente o homem e a mulher do continente. É diretamente para a humanidade que a conferência se dirige. Neste ponto, a introdução às conclusões é muito clara: “A Igreja latino-americana, reunida na 2ª Conferência Geral do seu Episcopado, concentrou a atenção sobre o ser humano deste continente que vive um momento decisivo do seu processo histórico”. Consciente de que “para conhecer a Deus, é preciso conhecer o ser humano” [2], a conferência se voltou para o homem” [3]. E até mesmo antes dos documentos da conferência, aparece uma “Mensagem aos Povos da América Latina”, mensagem que tem o caráter de palavra conclusiva da conferência, mas posta no inicio do texto. E como diz o texto logo no seu início: é um “sinal de compromisso”.

A conferência de Medellín foi a primeira vez em que uma grande assembléia eclesial se interessava por um tema que não era só interno à vida da Igreja. O Concílio acabou fazendo isso, mas como conseqüência de começar tratando das questões eclesiais (começou pela Liturgia). Algumas encíclicas de João XXIII e de Paulo VI foram dirigidas aos “homens de boa vontade”, mas foi a primeira vez que uma conferência geral de um episcopado continental se dedicava a tratar temas do mundo.

O tema geral proposto para a conferência foi “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”. O título diz que o tema é em primeiro lugar a Igreja e o discurso do papa aponta para isso. Mas, na prática, de fato, a discussão e os documentos finais continham sempre um situar-se como Igreja mas se dirigiam ao mundo e aos povos do continente. Esta contradição revela, é claro, a divisão natural e ideológica que existia no episcopado e a diferença que ficou entre o texto prévio trazido no início para ser discutido em Medellin e o trabalho posterior dos bispos durante as discussões e grupos na conferência.

Os textos de conclusão da conferência foram polidos e “domesticados” por uma revisão curial em Roma. Mesmo assim, quem os lê fica admirado com a abertura humana e o desejo de diálogo que perpassa os documentos. Formulados na linha do “ver, julgar e agir”, partem sempre da realidade, propõem uma analise bíblica e teológica e finalmente contêm sugestões para a ação social e pastoral. A conferência se propôs a discutir e aprofundar três eixos: a realidade social e política do continente, a evangelização e ação da Igreja e, finalmente, a organização interna da Igreja (cada categoria membro da comunidade eclesial). Dentro de uma diversidade tão grande de temas e questões, é claro que se percebe nos 16 documentos de conclusões que certos temas foram mais aprofundados ou que se conseguiu certo consenso e sobre outros, não. É sintomático que os primeiros documentos são sobre Justiça e Paz. Entre muitos pontos positivos e até novos neste tipo de documento, ao se rever, hoje, não deixa de ser significativo que não aparece nenhuma referência ao fato que em tantos países do continente os militares tenham tomado o poder. Os documentos não condenam o militarismo, nem falam diretamente em ditaduras, a não ser quando o documento sobre a Paz, para dizer que, normalmente, a Igreja não crê em revoluções, cita a Populorum Progressio quando diz que “a insurreição revolucionária pode ser legítima no caso de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa e prejudicasse o bem comum do país”(PP 31; Med 2, 19).

Apesar de que o padre José Comblin tem razão quando afirma que Medellín representou o nascimento de uma Igreja Católica propriamente latino-americana e caribenha, isto é, com “cara dos nossos povos”, basta percorrer as citações e notas bibliográficas de cada documento para constatar que, já naquela época, os bispos só ousavam afirmar coisas mais abertas e corajosas, se para isso podiam citar o papa (Paulo VI) ou o Concílio. Neste sentido, “nada de novo debaixo do sol”, se não vem de um poder maior. Talvez, a razão disso ter ocorrido até em Medellín é que, só quando os bispos mais abertos podiam se apoiar em alguma citação do papa ou do Concilio, conseguiam fazer passar as suas propostas na assembléia heterogênea e majoritariamente conservadora.

Dizem que, mesmo assim, muitos bispos presentes votaram nos textos sem se dar conta das conseqüências de tudo o que tinham afirmado e assinado.

Ao reler, hoje, os 16 documentos, qualquer leitor perceberá que a abertura e a profecia são mais explícitas nos primeiros documentos que versam sobre temas sociais e são mais tênues ou fracas nos documentos sobre a própria Igreja. Para os bispos, é mais fácil (embora muitos nem consigam isso) ser corajosos e proféticos, ao falar de “estruturas sociais e do mundo” do que ao se referir diretamente a questões internas da Igreja e da pastoral. Neste ponto, uma conclusão: Medellín foi uma conferência pioneira e propôs transformações na identidade da fé e da pertença eclesial. Entretanto, não ousou mexer nas estruturas eclesiásticas. Quis mobilizar a Igreja e mesmo propor uma transformação profunda de sua ação pastoral, mas não teve a coragem de enfrentar nenhum dos problemas reais que o clero e a hierarquia enfrentavam já na época: a centralização de Roma, o autoritarismo como jeito de organizar a Igreja, o celibato obrigatório dos padres (na época de Medellín, as ordens e congregações religiosas, assim como o clero diocesano já enfrentavam uma onda imensa de saídas, muitas delas ocasionadas pelo problema da identidade do padre na Igreja e no mundo, mas também pela obrigatoriedade do celibato sacerdotal). O resultado desse medo ou quase covardia institucional é que a estrutura de sempre se encarregou de neutralizar e fazer esquecer a mensagem profética da conferência. Tanto que hoje somos obrigados a nos perguntar que herança ficou de Medellín na Igreja de Aparecida.

 

3. Herança para uma Teologia Pluralista da Libertação

Não adianta procurar chifre em cabeça de cavalo. Evidentemente, um tema como Pluralismo cultural e religioso não se colocavam no tempo e no contexto de Medellín, ao menos como se coloca hoje e não aparecem diretamente nos documentos. Ao contrário, os textos são de caráter bastante cristocêntricos e aparentemente exclusivistas. Vários documentos insistem: “Somente à luz de Cristo, se esclarece o mistério do homem”. (Med 1 – sobre a Justiça, n. 4). “A solidariedade humana não pode se realizar verdadeiramente senão em Cristo que dá a paz que o mundo não pode dar” (Doc 2, sobre a Paz, n. 14). É claro que são citações mais afetuosas e culturais do que propriamente dogmáticas e teológicas. No documento sobre Pastoral Popular, (Doc 6), propõe que a Igreja não se comporte como seita e saiba incorporar e incluir as pessoas das mais diversas culturas e expressões espirituais. Ali, se fala da “secreta presença de Deus”, da “luz da verdade que ilumina a todos”, do “Verbo presente já antes da Encarnação” (e não explicita que é Jesus Cristo) (Cf. Med 6, n. 5). Este tipo de teologia que vem do Concílio (Declaração Nostra Aetate) aparece em vários textos. Não é por aí que podemos encontrar a herança de Medellín para uma Teologia Pluralista da Libertação. Ela pode ser descoberta na preocupação da conferência com a realidade humana, com sua opção de dialogar com a humanidade e se dirigir fraternalmente ao ser humano. Basta comparar os temas de Medellín e o estilo dos textos com Santo Domingo e Aparecida e a primeira impressão é quase como se os textos viessem de Igrejas diferentes.

Esta opção de falar ao ser humano de hoje e de ter uma mensagem que possa ser útil e contribuir com a paz e a justiça neste mundo não está superada e continua sendo um desafio para a Teologia. Esta não pode nunca ser mera discussão acadêmica, nem se contentar em responder a questões apenas eclesiásticas. O caminho aberto por Medellín não pode ser fechado. Sua metodologia de sempre partir da realidade e a ela voltar faz com que nós todos que trabalhamos hoje com Teologia Índia, Teologia Negra, Teologia feminista e todas as teologias contextuais somos, todos, filhos e filhas de Medellín.

Um outro elemento que nos liga a Medellín é o seu esforço em ser fiel ao Concílio Vaticano II na elaboração de uma eclesiologia que parte da Igreja local (já ao partir da realidade) e tem o reino de Deus como eixo central. Até hoje, nos mais diversos estudos de Teologia da Libertação, nos referimos sempre à proposta de Medellín, contida no documento sobre Juventude: “Que se apresente cada vez mais nítido, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação do ser humano por inteiro e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a). Dois anos depois, o Concílio de Jovens, organizado pela Comunidade de Taizé, retomava este texto, acrescentando que, para ser isso, a Igreja deveria se constituir como “espaço aberto e de comunhão para todos os seres humanos”.

O cuidado de Medellín em respeitar e valorizar as culturas latino-americanas e caribenhas é para nós uma herança importante, porque nossa proposta é uma Teologia Pluralista da Libertação, unida à teologia que se faz em outras partes do mundo, mas, enraizada nas nossas culturas e com cara de negro e índio, o que significa concretamente re-elaborar a espiritualidade macro-ecumênica, proposta pelos três encontros continentais da APD (Assembléia do Povo de Deus), realizadas nos anos 92, 96 e 2000, atualmente a partir de uma espiritualidade pluralista e de matriz afro-indígena. Ninguém de nós pensa que teria sentido um Medellín 2 nos moldes de uma conferência episcopal católica, mas a herança de Medellín para uma Teologia Pluralista da Libertação no nosso continente e no Caribe poderia se concretizar se a ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo) e tomasse os 40 anos de Medellín e, mesmo em 2009, organizasse um fórum macro-ecumênico sobre como as Igrejas cristãs devem ser presentes e atuantes nos processos sociais e políticos novos e transformadores que estão ocorrendo em vários países do continente. Penso que traduziríamos o texto básico de Medellín “Para encontrar a Deus é preciso encontrar o ser humano” em “Para encontrar a Deus, é preciso inserir-se em nossos povos e, assim, viver e estimular a vocação social e política transformadora de nossas comunidades”.

 

O milagre divino é que, apesar de todas as dificuldades da Igreja e do mundo, Medellín deixou um espírito que não morreu. Embora restrito a minorias proféticas, o apelo dos bispos na conferência ressoa até hoje:

 

 


 

[1] Cf. CONCLUSÕES DE MEDELLIN, A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio, Petrópolis, Vozes, 1968.

[2] Trata-se de uma afirmação de um padre da Igreja (Teodoro de Mopsuécia, século IV), retomada por Paulo VI no discurso de encerramento do Concílio Vaticano II, 07/ 12/ 1965.

[3] - CONCLUSÕES DE MEDELLIN, idem, p. 41.

 

 


 



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