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Autor:González Parada, José Ramón ;
 
AGENDA LATINO-AMERICANA ANO:2019
 

Extinguir a Fome pela Lei

O Direito à alimentação

José Ramón González Parada


É o maior escândalo da terra que ninguém queira assumir o controle dos pobres e desamparados. Thomas Münzer, 1525. Seus discursos formavam a ideologia da Guerra dos Camponeses.

Se o mundo desejasse uma recuperação de seu panorama moral, se desejasse ver crescer o número de homens suficientemente fortes e capazes de lutar, não pela pele, mas para manter no mundo princípios democráticos que dignificassem a condição humana, o mundo teria, em primeiro lugar, que eliminar por completo o degradante estigma da fome. Josué de Castro, 1951. As análises influenciaram a agenda internacional e foram parcialmente assumidas pela FAO.

Nas margens do rio Araguaia, Pedro Casaldáliga dizia que “a fome não espera, temos que alimentar os famintos; depois virá o ensinar-lhes a pescar e dar-lhes a vara, mas sobretudo que saibam que o rio é dele”. Nesse território, que vai da urgência da fome à consciência da propriedade do rio, debate-se o direito à alimentação. No mundo de hoje, 800 milhões de pessoas passam fome, e outros 2 bilhões estão mal nutridos; são os deserdados da terra, desapropriados do que era seu, o rio onde pescar, a terra da qual alimentar-se. O direito à alimentação é devolver o planeta aos deserdados da terra, ligado à urgência da fome.

Ambas as coisas funcionam apenas reciprocamente: sem resolver a urgência não cabe o direito; sem o direito, qualquer solução será - como diz o refrão: pão para hoje, fome para amanhã.

A fome é hoje um dos problemas globais vistos como graves riscos ou ameaças à estabilidade do sistema econômico mundial, enquanto a indústria da produção de alimentos é um dos mais importantes setores da acumulação capitalista. A alimentação mundial, em vez de um risco para a estabilidade sistêmica, é um direito público universal, como foi reconhecido internacionalmente.

O tema da alimentação, no entanto, não é apenas um direito, mas uma condição para o exercício da democracia; sem ela será imposta a política do agronegócio. Sabemos que o mercado não pode e não foi pensado para resolver os problemas da população. O mercado é o não lugar por onde as necessidades sociais se esvaem, enquanto emergem os negócios globais.

O direito à alimentação na América Latina une-se à urgência alimentar, abordada em programas específicos, como o da Fome Zero no Brasil, e outros semelhantes, no Equador e Bolívia, entre outros países latino-americanos. Esses programas alimentares devem ser baseados em leis que abordam o tema fundamental do direito à alimentação; leis que para serem eficazes devem ser justificáveis, isto é, passíveis de reclamação diante de uma autoridade judicial com capacidade para obrigar o cumprimento do direito.

Interessa-nos destacar os casos das Constituições do Equador e da Bolívia, nas quais o direito à alimentação ficou vinculado aos preceitos constitucionais de soberania alimentar. A partir daí, desenvolvidos nos programas nacionais e legislações específicas.

Tanto no Equador como na Bolívia a soberania alimentar é complementada por leis de apoio à produção camponesa, visando satisfazer a demanda interior de alimentos, programas de alimentação escolar e cesta básica em determinadas situações. A nova legislação, resultado democrático das mobilizações populares e de transação negociada, responde à heterogeneidade dos grupos étnicos e sociais, que formam o bloco emergente, e o poder, que deveria ter urgência em efetivar o direito à alimentação.

A FAO, por seu lado, pelo programa Direito à Alimentação, impulsionou uma legislação inovadora em vários países latino-americanos. Entre as mais recentes, a Lei de Segurança e Soberania Alimentar na República Dominicana, em 2016.

No momento de valorizar o marco normativo da soberania alimentar e o direito à alimentação nesses países, há que se levar em conta que a tradição jurídica responde, fundamentalmente, ao modelo de desenvolvimento imposto pelos atores econômicos mais poderosos. Junto com uma legislação inovadora e avançada, reaviva uma legislação anterior, e em diversas ocasiões, elas entram em contradição.

A FAO igualmente promoveu uma legislação específica sobre alimentação escolar, pois, como destaca, “a alimentação escolar é considerada um fator essencial ao desenvolvimento humano sustentável; adquiriu um crescente reconhecimento de proteção social aos mais vulneráveis e garantia de acesso à alimentação adequada para os e as menores de idade no âmbito escolar”.

A alimentação escolar, por outro lado, pode ser combinada com outras medidas de grande interesse do ponto de vista da soberania alimentar, quando relaciona as compras públicas com a economia camponesa, a agricultura familiar e os circuitos de proximidade. Além disso, propicia a participação de mães e pais na preparação de alimentos e no serviço do refeitório escolar. Atualmente, na maioria dos países da América Latina, existem programas de alimentação escolar. Mas elevar em nível de lei a alimentação escolar supõe avanço e consolidação do direito à alimentação. Nos cinco últimos anos foram aprovadas as seguintes leis de alimentação escolar: Bolívia, Lei de Alimentação Escolar no âmbito da soberania alimentar (2014); El Salvador, Lei do Copo de Leite Escolar (2013); Honduras, Lei de Alimentação Escolar (2016); Peru, Lei de Promoção de Alimentos Saudáveis para Meninos e Meninas (2013); Uruguai, Lei de Alimentação Saudável nos centros de ensino (2013). O alcance dessas leis e sua eficácia serão muito diferentes segundo a estrutura política e a mobilização social de cada país.

Algumas, como de El Salvador, são manifestamente insuficientes. Outras, como é o caso da Bolívia, são exemplares quando reúnem em sua Lei de Alimentação Escolar os objetivos produtivos em nível local e a participação da comunidade na gestão dos refeitórios escolares.

O simples enunciado das novas leis alimentares é insuficiente para valorizar o avanço do direito efetivo à alimentação. Será necessário conhecer o seu conteúdo e sua execução. A transparência, a prestação de contas e a participação ativa das comunidades permitirão conhecer sua eficácia real. Mas a mera existência da lei é o ponto de partida para reclamar e conseguir melhorias na alimentação popular.

Direito à alimentação e democracia

Solucionar o problema da falta de acesso aos alimentos, a desnutrição e em última análise a fome não é questão técnica. Nem para alcançar cadeias de valor mais eficientes ou muito menos delegar a solução à “responsabilidade social corporativa” - sempre voluntária - dos grandes consórcios do agronegócio, cujos gabinetes de marketing agora trabalham sob esse honroso nome. Solucionar a desnutrição e a falta de alimentação básica são questões de justiça social. E como tais devem ser abordadas a partir das instituições democráticas, ou melhor, tornando democráticas as instituições públicas. Não é o mesmo que uma lei de alimentação infantil priorizar a compra de bens importados para estimular a compra em um mercado local.

Defender o direito à alimentação é tomar medidas, favorecer a legislação adequada, questionar o oligopólio do agronegócio e das corporações agroquímicas - Monsanto-DuPont e Syngenta, que controlam mais da metade do mercado mundial de sementes, defender a produção camponesa, exercer a democracia e finalmente devolver os direitos destruídos: o trabalho, a água, a terra e a cultura. A maneira como abordarmos a alimentação será determinante à orientação do modelo produtivo: para uma economia dependente, empobrecedora e injusta, ou para modelos equitativos, autocentrados e ambientalmente sustentáveis. Aqueles que levantaram a bandeira da soberania alimentar e consequentemente a do direito à alimentação foram os movimentos indígenas e camponeses; será preciso que os movimentos sociais urbanos compartilhem a perspectiva da distribuição e consumo ditos objetivos. Pois como assinala Susan George, “a comida está justamente na encruzilhada da crise ecológica, social e financeira”.

 

José Ramón González Parada

Madri, Espanha

 

 


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