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“Nossos filhos são tão bons como os deles”.
Carta aberta ao Presidente da República

Neemias 5, 1-5

Moisés COELHO CASTRO


 

  Excelentíssimo Senhor Presidente;

Tomo a liberdade de escrever a V. Exa. por saber que o senhor representa um governo legitimamente conduzido ao poder pelo voto popular, além de ser alguém capaz de ouvir a voz, os anseios e os desejos das pessoas simples, seus governados, que o escolheram para governar o nosso país. Escrevo, também, porque já não suporto mais ficar calado diante de tanta injustiça e opressão que nossos irmãos estão sofrendo, gente como a gente, feita de carne e sangue, que luta pela vida e contra a morte.

O povo expressa seus anseios e seus clamores em forma de declarações que alarmam e causam indignação. São declarações verbais e às vezes sem palavras. Há aquelas animadas e inanimadas. Outras são de vivos ou de mortos que ainda falam. Há também as que vêm em forma de pranto e de canto. Mas todas, sem exceção, emanam dos becos, vilas, favelas e de todos os cantos, de onde saem mulatos, pobres e pretos – são quase todos pretos, pobres e indefesos –, que são como podres e tontos de encantos. Esse povo fala e clama através da própria vida, expressão única da verdade do seu sofrimento. Um povo, nosso irmão, que geme e que sangra suas feridas nas ruas, fábricas e lavouras, suportando as dores dos novos campos de concentração.

Da sua cadeira, Senhor Presidente, é possível ver e escutar o que escuto e vejo. São vozes de lamento, prantos de dores e gritos de fome dos nossos meninos e meninas, que têm os seus sorrisos roubados e seus corpos violentados nas ruas e nas praças todo o dia. Seus clamores chegam aos ouvidos e fazem abrir os olhos de todos, mesmo que quase todos virem seus rostos, fechem suas portas e durmam seus sonos apáticos.

Excelentíssimo Senhor Presidente;

Não podemos mais deixar de lado as marcas dos corpos “capados, sangrados, porém festeiros”, que se espalham por todos os lados, maculando nossa pátria, nossa terra, nossa vida, nossos sonhos, nossos amores. São marcas de sangue, de fome e de opressão; máscaras da vida e da morte, sinais da grande tribulação.

Depois que senti as dores e ouvi os clamores não consigo mais jogar flores, apenas pedras, nem que sejam aos porcos. Mas pedras eu lanço, porque aprendi com Cecília Meireles que “até as pedras com o tempo mudam”. Os rios mudam seus cursos, as nuvens mudam de lugar, as pessoas mudam e o mundo precisa mudar, senão não será mais possível de novo para a vida do povo. É a vida desse povo sofrido que precisa mudar primeiro, Presidente.

O clamor é muito grande. Todos clamam. Os homens, as mulheres, as crianças, as prostitutas, os pobres, os agricultores, os operários, os sem emprego, os sem-teto os sem-terra, os “sem-isso” e os “sem-aquilo”. Há sempre alguém clamando em algum lugar. É um clamor de dar dó. É só vendo e ouvindo para crer e sofrer.

O clamor do povo é contra nossos próprios irmãos. Contra os patrões, os endinheirados, os banqueiros, os empresários, os políticos, os governantes, os assassinos, os mentirosos e todos aqueles senhores e senhoras que oprimem, empobrecem e matam as gentes por todos os lados da nossa nação.

Alguns do povo estão dizendo por aí: Somos muitos, nós, nossos filhos e nossas filhas; muitas são as nossas bocas e pouca a comida que chega às nossas mesas; que se nos dê arroz, feijão e carne, para que comamos e vivamos e nenhuma de nossas crianças morra de desnutrição, barriga d’água e falta de pão.

Os roceiros e pequenos agricultores não cessam de clamar e de dizer: Não podemos mais plantar em nossas terras, porque não são mais nossas; o banco engoliu tudo, inclusive nossas casas. A colheita não deu para pagar os juros e os impostos sobre o financiamento; tivemos que entregar aquilo que nossos pais nos deixaram de herança, o lugar onde nascemos que era o que tínhamos de mais sagrado em nossa família; fomos obrigados a morar nas cidades, nas favelas e até mesmo nas ruas; hoje, somos desempregados, não estudamos e nem aprendemos a lidar com computador, sabemos apenas plantar e colher. Na cidade não há lugar para nós e o nosso destino é o frio e a dor.

Há outros que reclamam com razão quando dizem: Tomamos dinheiro emprestado dos agiotas, gente como a gente, para pagar a conta de luz, a conta de água e o IPTU, mas, que sofrimento, o salário só deu para a comida dos meninos; o agiota veio atrás e levou a televisão, a geladeira e o fogão e, ainda, nos ameaçou de morte. Agora, temos que cozinhar em fogão de lenha e não podemos nem mais ver o Silvio Santos no domingo. Não é grande a judiação?

Mas o clamor mais duro de ouvir, Senhor Presidente, é o de algumas mães que dizem constantemente: Nós somos da mesma carne como os ricos, os patrões e os banqueiros, e nossos filhos são tão bons como os deles; e eis que sujeitamos nossos filhos e nossas filhas para serem escravos deles; algumas de nossas filhas já estão reduzidas a meros objetos sexuais, tornaram-se prostitutas; outros de nossos filhos, que ainda são meninos, deixaram de brincar e de estudar para se matarem nos carvoeiros, nos sisais, nas esquinas e faróis vendendo suas vidas, seus corpos, maconha, chicletes, cds, muambas e coisas para o lar; o que corta o nosso coração é saber que não podemos fazer nada, não está em nosso poder mudar a situação; não temos mais campos, não temos mais casas, não temos mais educação, não temos mais saúde, não mais emprego, não temos mais comida, não temos mais dignidade, não temos mais sonhos, não temos mais nada, não temos mais vida...

Excelentíssimo Senhor Presidente;

É difícil ouvir esse clamor, mas é tudo verdade. O povo clama, geme, sofre e suporta angústias até o fim. Até quando, Senhor Presidente? É o povo que afirma veementemente: Não está em nosso poder mudar isso. Mas está no poder de quem? De quem é o poder?

Andam falando por aí que o nosso país está vivendo um período real de democracia sem precedentes na história. Ora, eu que tive condição de ir a uma escola aprendi que democracia é o governo do povo e para o povo. Mas que raios de “governança” democrática é essa, na qual o povo é aquele que paga pelos juros da dívida externa, pelo prejuízo da banca-rota dos banqueiros, pelo desvio das verbas públicas, pelo desmazelo com o sistema único de saúde, pela corrupção dos políticos, pelo prejuízo da impunidade dos traficantes, pelo trabalho que ainda continua escravo, pela exploração do capital estrangeiro, pela mais-valia de todos os ricos, pelo conforto da fétida e covarde elite, pela alegria dos churrascos dos latifundiários, pelas festas da burguesia? É o povo pobre que paga essa conta com seu suor, suas lágrimas e seu sangue. É o povo pobre que entrega o seu corpo para ser pisado e sangrado até a morte. É o povo pobre que sofre, geme e suporta angústias, perdendo a sua vida, dignidade, esperança e felicidade.

É grande, Senhor Presidente, o clamor do povo e de suas mulheres contra os ricos, os políticos, os banqueiros, os patrões, seus irmãos. Os filhos daqueles que clamam são os mesmos que sofrem e sangram para garantir a mesa e a alegria dos filhos daqueles que exploram, compram, vendem e matam os direitos da nação. Os que clamam afirmam: Nossos filhos são tão bons como os deles. Mas, o que fazer para garantir esse mínimo de igualdade? Como fazer valer a máxima da democracia que garante a todos o direito de serem iguais? A lei afirma que todos são iguais, mas por que alguns são mais iguais do que outros?

O povo está clamando contra seus próprios irmãos, seu povo e sua nação. Até quanto esse povo encontrará forças para clamar? Precisamos de ouvidos para ouvir e de olhos para ver que o mundo à nossa volta precisa mudar.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Indignadamente,

 

Moisés Coelho Castro

Passos/MG, Brasil

 


 



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