Servicios Koinonía    Koinonia    Vd esta aquí: Koinonía> Páginas neobíblicas > 026
 

 

Os teus olhos ainda me vêem

Salmo 139

Rosa Maria AIRES DA CUNHA


 

«Página Neobíblica» que obtuvo un áccesit en el concurso de Páginas Neobíblicas, otorgado por la Agenda Latinoamericana’2004

 

Iahweh, tu me perscrutas
e me conheces a fundo,
desde os primórdios do mundo.
Nem bem penso em lançar
a ti o meu profundo clamor,
tu já sabes
o que me causa dor,
antes que eu comece a falar.
Apesar disso,
venho a ti,
desnudo,
pobre e indigente,
vítima de sorte ingente,
para colocar,
diante de ti,
tudo
o que me ocorreu.
Iahweh, presta atenção,
porque não mais posso
ficar mudo.

 
Tu concebeste
uma infinidade de células
e com elas
me teceste
no ventre da minha mãe África.
Ainda era eu embrião,
os teus olhos me viram.
Nasci e engatinhei
em ressequido chão.
O sol causticante beijou
e crestou
minha pele
e sobre ela caiu a noite.
Então cresci,
sem provar açoite,
só desejando ser.
E tu, Iahweh, que conhecias
as profundezas do meu ser,
pois é maravilhoso o teu saber,
deixaste meus pés correrem, livres,
pela amplidão da savana.
Livres também deixaste minhas mãos,
que colhiam frutos e caçavam,
com vontade soberana,
a cada amanhecer.

 
Ah, mas quão misteriosos
são teus projetos!
Os que fizeste para os teus filhos
não têm fim...
Meus adversários, no entanto,
não respeitaram
teus desígnios admiráveis.
Por isso tramaram
contra mim
ardis abomináveis.

 
Não mais ouvi
da toutinegra o chilreio.
Não mais cacei
leopardos nem leões.
A iniqüidade cingiu
meu corpo com grilhões.
A crueldade me subjugou
e me jogou
em fétidos navios negreiros.
E os teus olhos viram
quando eles singraram os mares
sem dar ouvidos
aos meus lamentos banzeiros.
Menosprezando teus projetos,
o impiedoso pravo
apartou-me do seio da minha mãe,
para que eu conhecesse,
da escravidão, o travo.
As ondas do mar,
outrora tão alvissareiras,
vaticinaram sem cessar:
- Em longínquas plagas
vais aportar.
Escravo, jamais hás de voltar!

 
Ah, Iahweh, se matasses o injusto...
Gritei em vão:
- “Homens sanguinários, afastai-vos de mim!”
Esses, Iahweh, que menosprezaram
teus planos,
que não me trataram como irmão.
Tão logo cheguei
às terras inóspitas
-os teus olhos viram-,
a vileza me separou
do que me era precioso.
Tratou-me como mercadoria,
deixou-me à míngua,
vítima de plano ardiloso.
Baniu minhas crenças,
com ferro em brasa me marcou,
calou meu cantar
e, sob o chicote,
me fez trabalhar,
gemer e chorar.
Tu sabias, Iahweh,
que eu não iria sucumbir,
porque meus dias
foram por ti fixados.
Ninguém os pode subtrair.
Mas perdi tudo;
não... quase tudo.
Restou-me a dignidade,
gema cristalina, minha essência,
que conservei
em meio à adversidade.

 
E os teus olhos viram, Iahweh,
enquanto eu labutava
de arrebol a arrebol,
nas plantações, nas minas, nos pastos,
tangendo o gado e o engenho,
fazendo melado
para adoçar a casa-grande.
Chorando, todavia,
o amargor da senzala,
saudoso
do canto mavioso
da distante cotovia.

 
E os teus olhos viram, Iahweh,
enquanto eu removia dos caminhos
incontáveis pedras e espinhos
e me embrenhava nas matas,
com esforço sobre-humano,
para fazer crescer
o Novo Mundo.

 
E os teus olhos ainda vêem, Iahweh,
que, mesmo banida
a execrada escravidão,
continuo a erguer
o continente latino-americano,
ainda que prosseguindo como excluído,
sem que, em tempo algum,
o mundo
tenha me agradecido
por havê-lo tornado
tão fecundo.

 
E os teus olhos ainda vêem, Iahweh,
que, mediante o dom
por ti ofertado a mim,
não desisto de produzir nem de me doar,
embora rechaçado.
Tal qual sabiá-da-campina,
entôo cantos de peito aberto
por todos os rincões
da América Latina,
revelando toda a pujança
de meu coração puro,
como o de criança.

 
Coração que se empenha
em combater o preconceito racial,
que continua a lutar
por justiça,
por igualdade,
por inclusão social.
Coração que é
imenso e forte,
pródigo de amor e fé.
Coração que se eleva
pleno de esperança
e canta:
- Iahweh, os teus olhos ainda me vêem
sofrer com a marginalização.
Os teus olhos ainda me vêem
desejoso de construir a cada dia,
uma nova civilização
de incondicional engajamento,
de incondicional aceitação,
de incondicional cidadania.
Vem e sonda
meu coração de pequenino!

 
Conhece minha preocupação!
Conduze-me pelo teu caminho sem fim,
para que a opressão se afaste de mim.
Estou de braços,
olhos
e coração abertos,
perdoando os que me injuriaram,
para que, juntos,
possamos realizar os teus projetos.
Conduze-nos, Iahweh!
Assim seja, axé!

Nesta releitura do Salmo 139, o "salmista" é o negro, que, sabedor da onisciência e onipresença de Deus, fala de tudo o que lhe aconteceu (e acontece) desde a época em que veio, como escravo, para o continente latino-americano, para ser explorado, por mais de três séculos, pelos seus "adversários", ou seja, os países que cresceram à custa do trabalho escravo. Em virtude de os opressores "não terem respeitado os projetos de Deus", contraíram uma grande dívida histórica não só com o continente africano, como também com os afro-descendentes.

Até hoje os descendentes dos escravos se encontram em desigualdade social e são duplamente marginalizados: em razão da cor e da pobreza.

Presto, portanto, minha homenagem a essa raça valorosa que tanto fez e faz pela América Latina e que busca a cidadania plena, sem restrições.

 
ROSA MARIA AIRES DA CUNHA
Santos-SP, BRASIL

 


 



  Portal Koinonia | Bíblico | Páginas Neobíblicas | El Evangelio de cada día | Calendario litúrgico | Pag. de Cerezo
RELaT | LOGOS | Biblioteca | Información | Martirologio Latinoamericano | Página de Mons. Romero | Posters | Galería
Página de Casaldáliga | La columna de Boff | Agenda Latinoamericana | Cuentos cortos latinoamericanos