O Bispo dos excluídos

Vasconcelos Quadros

 

 

 

 

 

O bispo franzino que enfrentou a repressão militar no Brasil e os pistoleiros a serviço do latifúndio vai sair de cena do jeito que pediu a Deus. "Foram 34 anos de desafios, mas também de esperanças. É lógico, normal e humano que me aposente" ‑ diz dom Pedro Casaldáliga. No dia 16 de fevereiro de 2003 ao completar 75 anos de idade, o religioso, nascido na Espanha, encaminhará ao Vaticano a carta na qual pedirá a sua aposentadoria. "Para a Europa, não volto. Ainda não decidi, mas fico no Terceiro Mundo" ‑ garante o sacerdote afável, mas combativo, que fez da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT) uma trincheira na defesa dos excluidos, numa época em que muitos oponentes da ditadura acabavam presos, torturados ou mortos. Na verdade, dom Pedro escapou da morte por um triz, em 1976, quando, por engano, a bala endereçada a ele tirou a vida do padre jesuita João Bosco Burnier.
Fundador da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), dom Pedro Casaldáliga acompanhou de seu "palácio " de paredes de barro e tijolos sem reboque, as transformações que a globalização impôs aos povos. Seu discurso ainda é radical contra miséria, mas ele constata que houve mudanças positivas: "Hoje há mais consciência, os movimentos populares avançaram". Nesta entrevista à FAMILIA CRISTÃ, dom Pedro diz sonhar com uma Igreja mais participativa e pede que os missionários busquem a igualdade entre os povos. "Há muita sede de Deus no coração da humanidade" ‑ garante.

 

 

Qual resumo o senhor faz dessas mais de três décadas entre sem‑terra, posseiros, índios e miseráveis?

São 34 anos de desafios, de graça e comunhão com Deus, vivendo esse tempo de transição política no Brasil e na Igreja. Foram  tempos de insegurança, mas também de semear esperanças. Chegamos aqui durante a ditadura militar, numa época de perseguição política e muita violência no campo, principalmente aqui no Mato Grosso.

 

O que o senhor acha que mudou nesse período?

O povo tem mais consciência. As pastorais cresceram  e ha mais espaço para o diálogo, como  ficou demonstrado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre (RS). Essa foi a melhor expressão do diálogo e do intercâmbio entre os povos do Terceiro Mundo com os do Primeiro Mundo. É o vaivém da solidariedade. Em 1968 não havia nada em termos de organização. Hoje temos a cidadania, os movimentos populares. São Félix do Araguaia ficava a 700 quilômetros da sede, que era em Barra do Garças. A estrada até lá, embora há 20 anos os políticos prometam que vão asfaltar, ainda é de terra, mas atualmente a mesma região tem 16 municípios. Onde não havia nada, temos sete assembléias regionais e estamos lançando o manual da prelazia e um pequeno código de direito canônico, pelos quais nos pautamos.

 

Quais transformações o senhor vê no mundo?

O mundo de hoje, com  todas as suas contradições, se sente um só. Querendo ou não somos um só mundo, uma só família, uma única casa nesse processo inevitável de globalização. Nosso problema é o pecado, que se impôs com um mercado a serviço do capital e vai derrubando qualquer tipo de controle e deixando o capital especulativo como um privilégio de 20% do planeta, enquanto o restante é marginalizado. Mas acreditamos que outro mundo, outra América e outra Igreja sejam possíveis.

 

Que expectativa o senhor alimenta da Igreja nesses tempos de globalização?

Queremos uma Igreja mais participativa, com mais lugar para mulheres e leigos, com uma reforma da Cúria Romana, uma nova forma de escolher os bispos e mais diálogo ecumênico. Desejamos, sobretudo, uma Igreja a serviço do mesmo Reino, onde o povo tenha terra, saúde, educação, justiça e liberdade.

 

Com a vivência humana e religiosa que o senhor tem, é tempo de se aposentar?

As circunstâncias da história nos forçam à aposentadoria. É lógico, normal e humano que me aposente. Aos 75 anos já não posso assumir certas responsabilidades e tenho de ser realista.

 

A mesma regra deveria valer para o papa?

O papa Celestino V (1209-1296) renunciou e, mesmo  se não existisse esse precedente, o papa João Paulo II também deveria renunciar. O poder vitalício me parece inoportuno.

 

Quais planos o senhor tem para depois da aposentadoria?

Meu sonho era ir para a África, simplesmente para estar em oração e solidariedade com os irmãos que moram  naquele cantinho marginalizado. A saúde, porém, já não acompanha mais meu sonho e não quero dar trabalho a ninguém. Para a Europa, não volto. Ainda não decidi, mas fico no Terceiro Mundo.

 

Qual o papel dos missionários no mundo de hoje?

Os missionários devem sair da atitude das possíveis verdades plenas e ir ao encontro de Deus em todos os corações. Quando eles chegaram aqui, Deus já estava neste mundo. Cada vez mais se fala em diálogo ecumênico e inter-religioso com todos os credos, seja dos índios, dos orientais ou dos afros. O primeiro papel do missionário é o diálogo. Depois, ser uma presença de solidariedade, uma profecia que detenha o processo de opressão e de injustiça e que levante a esperança dos povos. Diálogo, profecia e esperança devem pautar a ação do missionário.

 

A que o senhor atribui o crescimento de outras religiões e seitas no Brasil?

O fenômeno não está acontecendo apenas no Brasil. É no mundo inteiro. No Brasil, por definição e história, todo mundo era católico. Hoje não é mais possível ser católico por herança. Há mais liberdade e muita sede de Deus no coração da humanidade.

 

Na ditadura, os militares o chamavam de "bispo comunista" e várias vezes tentaram expulsá-lo. Como foi conviver com isso?

Cheguei no ano do AI (Ato Institucional)-5. Contra mim era acrescentado o fato de ser vizinho de uma área onde ocorria a Guerrilha do Araguaia. Esse fantasma fez com que nos olhassem como suspeitos. Lembro que em torno da prelazia as forças da Aeronáutica, da Marinha, do Exército e da Polícia Federal  fizeram quatro operações de guerra. Cercaram  toda a prelazia. Vários agentes das pastorais foram presos, levados para Campo Grande (MS) e torturados. A ditadura tentou me expulsar do Brasil por cinco vezes, até que o papa Paulo VI pediu a dom Paulo Evaristo Arns que os avisassem que tentar me retirar da prelazia era mexer com  o papa e com o Vaticano. O povo viveu um clima de terror, sobretudo no sul do Pará. Eu fiquei em prisão domiciliar.

 

Como eram as ameaças por seu trabalho na defesa de posseiros e indios?

Algumas ameaças eram diretas e outras apenas rumores que corriam  na boca do povo.

O fato é que elas viraram o pão de cada dia. Acho que nada aconteceu comigo porque não havia chegado a minha hora. Deus achou que eu precisava amadurecer.

 

O Brasil deve ingressar na Alca (Área de Livre Comércio das Américas)?

Estou preocupado com o rumo que o Brasil está tomando. A Alca representa um novo processo de domesticação do povo e colonização de nossa América. Infelizmente temos ainda o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial mediando essa política neoliberal. Sou contra, não pela integração dos povos, mas pela submissão, anexação e escravização da América Latina pelos Estados Unidos.

 

Como combater os efeitos danosos da globalização?

O mundo de hoje tem mais consciência, e a cidadania, que nem em palavra se conhecia, hoje existe. As pastorais da Igreja e os movimentos populares são uma realidade e devem avançar cada vez mais. Leigos e leigas devem ter mais vez e voz, atuar nas campanhas da fraternidade e ajudar o País a se movimentar.

 

 

O que mudou no Mato Grosso desde a sua chegada?

O Mato Grosso se modernizou em alguns aspectos. No Araguaia, os povos do sul, que antes não estavam presentes, já são mais de 30% da população. Fico preocupado com a monocultura da soja e do algodão. Estão transformando o Mato Grosso num campo de soja e de algodão e o líderJosé Martí dizia: "Se quiserem acabar com o País, entreguem-no à monocultura".

 

E para as comunidades indigenas, 0 que mudou?

 

Os povos indígenas têm crescido em número e consciência. Sabem reivindicar e muitos reconquistaram suas terras depois de muita lota. A política oficial é que é antiindígena.

 

A que as pastorais devem estar atentas?

Toda a Igreja deve ter consciência da necessidade de colaborar com os movimentos sociais e se envolver diretamente nas campanhas da fraternidade. A preocupação com os direitos humanos, que tem crescido, deve sempre estar presente. Também não se pode deixar de lado a questão da terra, onde o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) se transformou numa expressão significativa, mundialmente reconhecida.