MISSA DA TERRA SEM MALES

Pedro CASALDÁLIGA

Texto: Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra
Música: Martín Coplas
Gravação em cassete: Edições Paulinas Discos, São Paulo 1980.

 

   
 

Apresentação

 

Memória e Compromisso

Os cristãos estamos habituados a reconhecer e a celebrar somente os mártires que outros nos fazem. Ignoramos tranqüilamente os muitos mártires que nós fazemos.
Aquí, no Brasil, 1978 foi "Ano dos Mártires" da Causa Indígena. Celebravam-se trezentos e cinqüenta anos dos tres Mártires Riograndenses, Roque González, Afonso Rodriguez e João Castilho. O CIMI -Conselho Indigenista Missionário- achou que era de justiça que não se celebrasse apenas a morte dos tres missionários jesuítas. Porque os mortos eram muitos mais. Devia-se também celebrar a morte de milhares de índios, sacrificados pelos Impérios Cristãos da Espanha e Portugal.
Uns e outros, Mártires da Causa Indígena. A Cruz, no meio deles todos. Aqueles, morrendo pelo amor do Cristo. Estes, massacrados "em nome" do Cristo e do Imperador:


... mártires indefensos
pelo Reino de Deus feito Império,
pelo Evangelho feito decreto de Conquista.
Vítimas dos massacres que ficaram com nome glorioso
na mal contada Historia,
na mal vivida Igreja...

("Proclama Indigena")


As Ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul, "monumento-ferida em desafio", são o testemunho central do intento missionário das "Reduções Indias" dos Jesuítas, nos séculos XVII e XVIII. A famosa República dos Guarani, que mereceu os elogios insuspeitos de Voltaire e de Montesquieu. Essas Ruinas são também o testemunho constrangedor da barbárie dos cristianíssimos colonizadores ocidentais, nossos avós espanhois e portugueses. Sepe Tiaraju, luzeiro na testa, "São Sepé" para a fé do Povo, corregedor da Missão de São Miguel e o mais ilustre chefe guerreiro guarani, foi assassinado, juntamente com outros mil e quinhentos companheiros, pelos Exércitos de Espanha e de Portugal, irmanados na hora da barbárie. Nos campos de Caiboaté, dia 7 de fevereiro de 1756. Nessas Ruínas históricas e nesse Ano dos Mártires da Causa Indígena, nasceu a idéia da Missa da Terra- sem- males.
Pensou-se, primeiro, numa Missa "missioneira" em torno as Missões dos Sete Povos Guarani. Assim me pedia o irmão marista Antônio Cechin, gaucho "arrependido", revisador da Historia "mal contada", cronista apaixonado da caminhada do Povo, catequista da Libertação, também perseguido "no Templo e no Pretorio".
Eu cultivo a convicção de que América Latina -América Amerindia, mais na raiz- ou se salva continentalmente ou continentalmente se afunda. Seu passado de cativeiro é um saque continental. Continental deve ser a marcha de seu futuro de libertação.
Os Povos Indígenas do Continente, alem do mais, tão diversificados em sua cultura e em suas realizações, foram reduzidos, pelos Povos Conquistadores, a categoria anónima e arrasada de "Indios". Conhecidos como Indios apenas, como Indios foram depredados e confinados aos manuais e as vitrines. Sua Memória, então, devia ser celebrada numa só Missa, una e comum, um Sangue só e uma igual Esperança: a Missa Amerindia.


Eu sou América, sou o Povo da Terra,
da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar...
Do Colorado,
de Tenochtitlan,
do Machu-Pichu,
da Patagônia,
do Amazonas,
dos Sete Povos do Rio Grande...


Os Guarani, filhos da grande nostalgia, buscadores incansáveis da "Terra-sem-males", dariam o utópico tom político e também escatológico. A Terra-sem-males, que a mística guarani secularmente vem procurando, num êxodo comovente, é uma Terra possível, o dever fundamental da História Humana, a tensa alegria de nossa Esperança em Jesus Cristo, o Senhor Ressuscitado, o Novo Céu e a Terra Nova que o Pai Deus jurou dar a seus filhos.
Eu, missionário, espanhol -no caso, ser catalão não fez diferença-, diria minha parte de contrição, em nome da Espanha colonizadora e em nome da Igreja missionária. Pedro Tierra -entranhável pseudónimo de Hamilton Pereira da Silva-, brasileiro telúrico e vítima heróica da Repressão neo-colonizadora, diria sue parte, em nome do Brasil, com a força irada de seus homens novos. E Martín Coplas, argentino, descendente de quechua e aymara -pseudônimo com sabor de alma musical popular e que carrega o respaldo prócero de Martín Fierro- diria, em solfa, em varias músicas aborígenes do Continente, a parte mais profunda. Por Martín falariam outra vez as flautas dos Andes emudecidas e o amedrontado tambor do coração de seu Povo.
O mais, a História ja o contou, bem ou mal. Os Museus exibem-no com sacrílega passividade. E os novos Impérios -nacionais e multinacionais- da cobiça da terra, madeira, minério e mão-de-obra barata- continuam a executá-lo, perante os olhos impassíveis da Civilização Ocidental Cristã.
Verdade é que a última palavra ainda está por dizer:


"América Ameríndia,
aínda na Paixão:
um dia tua Morte
terá Ressurreição!"


Esta Missa ja escandalizou a alguns. E não apenas à TFP, (Tradição, Família e Propriedade) que a tachou de "sacrilega" e "blasfema". (Falando em TFP e Causa Indígena, lembro-me daquela charge que explica tudo. O Indio pergunta ao heraldo da TFP, que pregona pelas ruas, estandarte em alto, sua ordem conservadora:
"O TFP, tu vai defender também meu Tradição, meu Família e meu Propriedade...?"
Imagino que escandalizará tambem a alguns dos meus nostálgicos patrícios. Foi cantada tão belamente a epopéia hispánica da Descoberta da América! ("Llevaban la Espiga y la Rosa / y los Mandamientos y el Ave María...").
O etnocentrismo e o lucro capitalista -e todo tipo de egoísmo pessoal, étnico ou econômico-impedem entender e assumir não apenas esta Missa, mas toda Missa. Porque toda Missa verdadeira escandaliza necessariamente. A Missa é sempre uma ruptura, um Sacrificio, uma Passagem libertadora da Morte para a Vida: PASCOA.
Os cristãos primitivos tinham uma consciência mais clara do risco que significava celebrar a Ceia Pascal do Senhor, aquela "memória perigosa".
Para nós -cristãos menos lúcidos ou menos honestos- a Missa tem sido, por tempo demasiado, um sossegado espetáculo litúrgico a que se assiste passivamente e com o qual se cumpre uma prescrição eclesiástica. Por tempo demasiado viemos passando pela Missa como se passa por um coquetel social, sem nos marcar a vida com o Sangue da Aliança, sem abrir mão da nossa segurança egoísta em favor do Reino da Liberdade. Fechados num clima contraditoriamente "católico", que nega o Ecumenismo e a autêntica Catolicidade, que desconhece, de fato, o valor universal da Encarnação do Filho de Deus e sua Oblação em prol de todos os irmãos dispersos. Neste clima, os Indios, evidentemente, não têm nada a fazer numa Missa...
A revista missionária "Sem Fronteiras", cenário de uma pequena polêmica em torno a Missa da Terra-sem-males, pediu-me que mediasse no assunto. Isso fiz com uma simples carta, da qual são os parágrafos seguintes:
"Acredito na missão que foi a vocacão de Jesus, que e essência da Igreja, no dizer do Vaticano II. E me sinto herdeiro dos missionários de ontem -de seus pecados e de seus méritos. O "nós" da "Memória Penitencial" da Missa e um nós eclesial, coletivo. Que cristão pode negar, que cristão não deve assumir reparadoramente os erros cometidos ontem e hoje pela Igreja de Jesus, às vezes com a melhor boa vontade?
Os homens erram e os cristãos continuam humanos. Paulo repreendeu a Pedro por tentar acobertar a transmissão da cultura judaica na transmissão do Evangelho livre de Jesus Cristo. Foi em nome da Civilização Ocidental, chamada de "cristã", que os Conquistadores, acompanhados dos Evangelizadores, destruiram de fato, nao apenas Culturas mas Povos inteiros. Segundo estatísticas sérias, dentro das várias opiniões, o Brasil, na época da conquista, teria cinco milhões de Indios... Hoje tem cento e oitenta mil. Devo julgar o passado pelos olhos que hoje tenho. Antropologicamente, teologicamente. O que não significa culpar as intenções dos homens do passado. Se não pudessemos julgar assim, nem adiantaria estudar a História nem caminhariamos. O Novo Testamento é um juizo do Testamento Velho, feito pelo próprio Filho de Deus.
Perder a terra, perder a língua, perder os costumes, é perder o chão da vida, deixar de ser. Deixar de ser aquele Povo e, geralmente, deixar de ser mesmo. Quem não respeita uma Cultura, quem age etnocentricamente, "escraviza", sim. O Evangelho é Fé, não cultura. O Evangelho deve se encarnar em todas as Culturas de todos os Tempos. Todas elas humanas, todas susceptíveis de um aperfeiçoamento superior: a Graca do Verbo, encarnado nelas."
Acredito que a Missa da Terra-sem-males seja ortodoxa. Os quase quarenta bispos que participaram de sua primeira celebração, na catedral da Sé, de São Paulo, no dia 22 de abril de 1979, não reclamaram, muito pelo contrário. A Missa respeita o esquema litúrgico. Não é um oratório apenas, menos ainda um "show". É um texto musical e recitado, que ambienta e traduz indigenisticamente a Celebração Eucarística real.
Apaixonadamente, isso sim. Por ser a gente o que é e porque, no dizer do teólogo evangélico francês Georges Casalis, um escrito teológico -ou litúrgico ou pastoral- sem paixão, ja não mais refletiria a prática, a morte e a vida de Jesus de Nazaré.
A Missa tem dois momentos maiores, como textos indigenistas: a "Memória Penitencial" e o "Compromisso Final". A Memória, num diálogo entre América Amerindia e a coletiva conscência de nossa Civilização -colonizadora, missionária. O Compromisso, alternando trágicas referências históricas, algumas bem recentes, com o grito coletivo e compungido da Comunidade celebrante: "Memória, Remorso, Compromisso!"
Através da Missa toda, a Morte do Cristo e sua Ressurreição, sua Páscoa pessoal já completa, contrasta-se com a Páscoa Amerindia, carregada de mortes, mas "ainda sem Ressurreição". Toda a Missa, entretanto, vem traspassada de uma incontida Esperança, contrariamente ao que alguém quis entender. Traspassada também de um inevitável compromisso político, que torne acreditável e eficaz, agora e aquí, essa Esperança, escatológica em última instância.
A Missa invoca seus Santos: do lendário Montezuma até o missionário João Bosco, fuzilado, a meus pés, pela Polícia Militar, na delegacia de Ribeirão Bonito. Um canto emocionado à Mãe Padroeira da América define aquele espírito continental de que antes falei, a vontade de convocar, de congregar todos os Povos do Continente, numa só marcha de Libertação:


Morena de Guadalupe,
Maria do Tepeyac,
congrega todos os Indios
na estrela do teu olhar,
convoca os Povos da América
que querem ressuscitar.


No mais, o que importa é celebrar comprometidamente a Missa, toda Missa, comprometendo-se com a Causa dos Povos Indígenas, com a Causa-raíz da América. E viver e se "des-viver" por encontrar a Terra-sem-males e construí-la imediatamente, dia após dia, e espera-la ainda sempre, contra toda esperança, e anunciá-la fidedignamente com o limpo testemunho da própria existência.
Guarani de Deus todos nós, um dia a alcançaremos.
"Uirás " sempre a procura
da Terra que virá,
Maíra nas origens,
no fim Marana-tha!"

Pedro Casaldáliga
São Félix do Araguaia, MT


A Missa da Resistência Indígena

A Missa da Terra-sem-males começou a brotar sobre a pedra das ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul. Terra de fronteira entre a América espanhola e portuguesa, estas duas Américas que são uma só. América dividida pelo fogo dos conquistadores.
O templo semidestruído de São Miguel é um monumento testemunho do massacre do Povo Guarani, testemunho da resistência e da grandeza dos Povos Indígenas de toda a América. As pedras escurecidas pelo fogo e pelos séculos narram com seu terrível silêncio a passagem dos bandeirantes, a devastadora passagem dos exércitos de Portugal e Espanha.
A própria História da Resistência dos Povos Indígenas aos conquistadores gestou no sangue esta Missa da Terra-sem-males. A marcha dos Povos Indígenas do Continente, buscando seu próprio rosto, sua identidade, arrancou dos massacres sepultados pela história oficial toda a força de sua esperança num Continente libertado.
Quem busca sua identidade volta-se necessariamente para o passado. Para extrair dele o metal das armas que empunhará na construção do futuro. Neste poema vulcânico, a América mergulha suas raízes na terra-mãe-ameríndia e retira dela a seiva elementar que nutre o sonho e a marcha de seus filhos.
A Missa da Terra-sem-males é uma missa de memória, remorso, denúncia e compromisso. Ela nos atira no rosto esta realidade fatal: de todos os continentes escravizados -Asia, Africa e América- a América e o único que não retornará a seus filhos. Não se trata de sonhar o impossível sonho de uma América puramente índia. Trata-se de constatar a inenarrável violência com que os conquistadores saquearam este Continente.
A Asia se levanta e seus filhos a terão um dia. Os povos negros da Africa reconquistam palmo a palmo o Continente devastado pelo colonialismo. A América, contudo, jamais retornará as mãos dos povos indígenas, sepultados pelos massacres de Cortez, Pizzarro, Valdívia, Raposo Tavares. Devorados pelas minas de Potosí, escravizados pelas bandeiras, exterminados em todo o Continente pela peste que o branco trouxe no sangue. Sem retórica, cabe dizer que os conquistadores Ingleses, Espanhois e Portugueses se lançaram sobre o Continente americano como uma malta de saqueadores, reduzindo a escombros tres impérios riquíssimos e exterminando, num espaço de quatro séculos, cerca de noventa milhões de índios.
A Missa da Terra-sem-males brotou em terra Guarani, o Povo-aliança da América India. No centro do Continente, os Guarani foram duplamente submetidos. O conquistador, português ou espanhol, converteu a terra guarani em campo de batalha até a destruição completa de tudo quanto representasse trabalho humano ou humana aspiração.
Contra toda a violência, contra todo o sangue derramado, o Povo Guarani foi capaz de sonhar a Terra-sem-males. Nao foi um "Ceu-sem-males", foi uma Terra-sem-males, a utopia possível. A utopia construída pela luta de todos os oprimidos. A pátria libertada de todos os homens.
Poderia ter sido um poema, uma cantata, mas nasceu missa. Porque é impossível separar a historia dos Povos Indígenas da América da presença da Igreja entre eles. A mesma Igreja que abencoou a espada dos conquistadores e sacramentou o massacre e o extermínio de povos inteiros, nesta missa se cobre de cinza e faz sua própria e profunda penitência. A penitência por si só não conduz a nada, nem sequer alivia a responsabilidade histórica que a Igreja assumiu ao lado do branco colonizador. Contudo, a História marcha e a Igreja mantém um laço profundo com os oprimidos da América. Que esta penitência contribua para que este laço se converta em compromisso com a marcha do Povo a caminho de sua libertação.
A Missa da Terra-sem-males so se apossará de toda a sue dimensão quando alcançar sua vestimenta continental. É profundamente significativo que ela tenha sido escrita em português, idioma deste Brasil-quase-continente, oprimido e instrumento de opressão, gigante e escravizado, historicamente empregado de seus irmãos, vítimas do mesmo saque, combatentes da mesma resistência.
A Missa da Terra-sem-males é uma convocação a todos os oprimidos da América que marcharam durante séculos e marcha hoje em busca da Terra-sem-males libertada.

Pedro Tierra
Goiânia, 8 de outubro de 1979


Texto da Missa da Terra sem Males

Abertura

Todos (Canto)

Em nome do Pai de todos os Povos,
Maíra de tudo,
excelso Tupã.

Em nome do Filho,
que a todos os homens nos faz ser irmãos.
No sangue mesclado com todos os sangues.
Em nome da Aliança da Libertação.

Em nome da Luz de toda Cultura.
Em nome do Amor que está em todo amor.

Em nome da Terra-sem-males,
perdida no lucro,
ganhada na dor,
em nome da Morte vencida,
em nome da Vida,
cantamos, Senhor!



Memória Penitencial

Todos (Canto)

Herdeiros de um Império de extermínio,
filhos da secular dominação,
queremos reparar nosso pecado,
viemos celebrar a nova opção: Ressurreição.

Na Ceia da Morte e da Vida,
a antiga memória perdida;

a morte dos Povos do passado
na Festa do Povo esperado: Ressurreição;

a História da América inteira,
nesta Memória de Libertação;

na Páscoa do Ressuscitado,
a Páscoa Ameríndia
ainda sem ressurreição... ressurreição,
sem ressurreição...

Solo indígena, ou recitado (R) ou cantado (C). Todos (Canto)

Eu sou América,
sou o Povo da Terra,
da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar...

(R)

Do Colorado,
de Tenochtitlan,
do Machu-Pichu,
da Patagônia,
do Amazonas,
dos Sete Povos do Rio Grande...

(Vozes individuais)

Eu sou Apache.
Eu sou Azteca.
Eu sou Aymara.
Eu sou Araucano.
Eu sou Maia.
Eu sou Inca.
Eu sou Tupi.
Eu sou Tucano.
Eu sou Yanomani.
Eu sou Aymore.
Eu sou Irantxe.
Eu sou Karaja.
Eu sou Terena.
Eu sou Xavante.
Eu sou Kaingang.

Solo (R)

Eu, Guarani.
E é com canto Guarani
que todo o resto do Continente,
todos os povos do meu Povo,
cantam agora seu lamento.

(C)

Irmãos, vindos de fora,
se quereis ser irmãos,
escutai o meu canto!

Todos

Queremos escutar,
de coração aberto,
com a mão do remorso
sobre a ara do peito.
Queremos reparar
a História desta Terra,
massacre secular.

Solo (R)

Eu tinha uma cultura de milênios,
antiga como o sol,
como os Montes e os Rios de gran de Lacta-Mama.
Eu plantava os filhos e as palavras.
Eu plantava o milho e a mandioca.
Eu cantava com a língua das flautas.
Eu dançava, vestido de luar,
enfeitado de passaros e palmas.
Eu era a Cultura em harmonia com a Mãe Natureza.

Todos

E nós a destruímos,
cheios de prepotência,
negando a identidade
dos Povos diferentes,
todos Família Humana.

Solo (R)

Eu era a Paz comigo e com a Terra...

Todos

E nós te violamos
ao fio das espadas,
no fogo do arcabuz
queimamos teu sossego.

Solo (R)

Eu conhecia o ouro, o diamante, a prata,
a nobre madeira das matas,
mas eram para mim os enfeites sagrados
do corpo da Terra Mãe.
Eu respeitava a Natureza
como se respeita a própria esposa.

Todos

Caravelas do Lucro,
viemos navegando,
para vender a Terra
para explorar lucrando.

Solo (R)

Eu vivia na pura nudez,
brincando, plantando, amando,
gerando, nascendo, crescendo,
na pura nudez da Vida.

Todos

E nós te revestimos
com roupas de malícia.
Violamos tuas filhas.
Te demos por Moral
a nossa Hipocrisia.

Solo (R)

Eu tinha meus pecados,
eu fiz as minhas guerras...
Mas eu não conhecia
a Lei feita Mentira,
o Lucro feito Deus.

Todos

E nos te revestimos
com roupas de malícia.

Solo (R)

Eu era a Liberdade
-não uma estatua apenas-,
Moara em came humana,
a Liberdade viva.
Eu era a Dignidade,
sem medo e sem orgulho,
a Dignidade Humana.

Todos

E nós te escravizamos.
E nós te sepultamos
na escurião das minas.
Dobramos o teu corpo
sob os canaviais.

E te jogamos contra
as árvores amadas,
para cortar madeira,
cortando o teu espírito,
o cerne do teu Povo.

Solo (R)

Meu tempo era o Dia e a Noite,
o Sol e a Lua,
as Chuvas e os Ventos gerais,
meu tempo era o Tempo, sem horas.

Todos

E nós te amarramos
ao tempo do relogio,
no nosso pouco tempo
de pressas e interesses,
ao tempo-concorrência.

Solo (C)

Eu adorava a Deus,
Maíra em toda coisa,
Tupã de todo gesto,
Razão de toda hora.

Eu conhecia a Ciência
do Bem e do Mal primeiros.
A Vida era meu culto,
a Dança era meu culto,
a Terra era meu culto,
a Morte era meu culto,
eu era um Culto vivo!

Todos

E nós te missionamos,
infiéis ao Evangelho,
cravando em tua vida
a espada de uma Cruz.
Sinos de Boa-nova,
num dobre de finados!

Infiéis ao Evangelho,
do Verbo Encarnado,
te demos por mensagem,
cultura forasteira.
Partimos em metades
a paz de tua vida,
adoradora sempre.

Solo (R)

O amor do Pai de todos
me batizou com água da Vida e da Consciência
e semeou em mim a Graça do seu Verbo,
Semente universal de Salvação.

Todos

Quando nós te ferramos
com um Batismo imposto,
marca de humano gado,
blasfêmia do Batismo,
violação da Graca
e negação do Cristo.

Solo (R )

Eu era um Povo de milhões de vivos,
de milhões e milhões de Gente Humana,
milhões de imagens vivas do Deus Vivo.

Todos

E nós te dizimamos,
portadores da Morte,
missionários do Nada.

Solo (R)

Eu vos dei a beleza do Mar e suas praias,
eu vos dei minha Terra e seus segredos,
os pássaros, os peixes, os animais amigos,
servidores.

O milho da espiga apertada e repartida,
o bulbo generoso da mandioca
o pão de cada dia,
o guaraná cheiroso da floresta,
o caldo assossegante do chimarrão do Sul.
O remédio da Terra enfermeira.
A canoa, voadora nas águas.
O Pau-brasil de fogo,
nome do coração do vosso País...

Todos

E nós te depredamos,
desnudando as florestas,
calcinando teus campos,
semeando veneno nos rios e no ar.
A Terra generosa
separando, por cercas,
os homens contra os homens:
para engordar o gado
da fome nacional
para plantar a soja
da exportacão escrava.

Solo (C)

Eu era a Terra livre,
eu era a Agua limpa,
eu era o Vento puro,
fecundos de abundância,
repletos de cantigas.

Todos

E nós te dividimos
em regras e em fronteiras.
A golpes de ganância
retalhamos a Terra.
Invadimos as roças,
invadimos as tabas,
invadimos o Homem.

Solo (R)

Eu fazia um caminho a cada vez que passava.
Era a Terra o caminho.
O caminho era o Homem.

Todos

Nós abrimos estradas,
estradas de mentira,
estradas de miséria,
estradas sem saída.
E fizemos do Lucro
o caminho fechado
para o Povo da Terra.

Solo (R)

Eu era a Terra inteira,
eu era o Homem Livre.

Todos

E nós te reduzimos
em Vitrina e Reserva,
em Parque zoológico,
em Arquivo-poeira.

Solo (R)

Eu era a Saúde dos olhos,
penetrantes como flechas,
dos ouvidos atentos,
dos músculos harmónicos,
da alma em sossego.

Todos

E nós te mergulhamos
nos vírus, nos bacilos,
nas pestes importadas.
Teu Povo reduzimos
a um Povo de doentes,
a um Povo de defuntos.

Solo (R)

Eu vivia embriagado na Alegria.
A aldeia era uma roda de amizade.

Meus Chefes comandavam,
servidores do Povo,
com a sabedoria e o respeito
de quem se reconhece igual ao outro.

Todos

E nós te embriagamos
de cachaça e desprezo.
Fizemos-te objeto
do Turismo impudente.
Tornamos os teus Povos
uma placa de rua,
e o teu Saber antigo,
Tutela de menores.
Pusemos as algemas
dos nossos Estatutos
na tua Liberdade.
Jogamos tua Língua
nas covas do silêncio,
e os teus Sobreviventes
à beira das estradas,
à beira dos viventes
mão de obra barata
nas fazendas e minas,
nos bordéis e nas fábricas;
mendigos dos suburbios
das cidades sem alma;
restos do Continente
da grande Lacta-Mama

(A música se torna diferente em tom de desafio e esperança) Solo (C)

Eu era toda América,
eu sou ainda América,
eu sou a nova América!

Todos

E nós somos agora,
ainda e para sempre,
a herança do teu Sangue,
os filhos dos teus Mortos,
a aliança em tua Causa.
Memória rediviva,
na Aliança desta Páscoa.



Aleluia

Todos (C)

Aleluia! aleluia! aleluia!
Todos os Povos da Terra,
da Terra-sem-males,
louvem ao Pai!

O Evangelho é a Palavra
de todas as Culturas.
Palavra de Deus na Língua dos Homens!

O Evangelho é a chegada
de todos os caminhos.
Presença de Deus na marcha dos Homens!

O Evangelho é o destino
de toda a História. História de Deus na História dos Homens!

Aleluia... etc...



Ofertório


Todos (R)

Erguemos em nossas mãos
a memória dos séculos,
reunimos na carne do pão
a história do Tempo
de Libertação.

Aqui vos entregamos,
a vida banhada de chuva,
o milho plantado na terra,
o amor em pão repartido.

Aqui vos entregamos
a esperança da Terra-sem-males,
a caça-alimento na boca de todos,
0 culto da dança de todas as noites.

Aqui vos entregamos
a paz da abundância,
a liberdade dos Homens,
a vida de Homens iguais.

Todos

Na herança do milho,
na massa do pão,
a Páscoa do Cristo
e a nossa união.

Na sorte do vinho,
na luta e na morte,
a Páscoa do Cristo
e a Libertação.

Todos

Erguemos em nossas mãos
a memória dos séculos,
recolhemos no sangue do vinho
a história de um tempo de escravidão.

Em nossas mãos vos entregamos
a cinza das aldeias saqueadas,
o sangue das cidades destruídas,
a vencida legião dos oprimidos.

Em nossas mãos vos entregamos
os seios exaustos das minas,
a água profanada dos rigs,
as madeiras-em-cruz deste martírio.

Em nossas mãos vos entregamos
as veias abertas de América,
a pedra calada dos templos,
o pranto da memória índia.

Todos (C)

Na herança do milho... etc.

 

Rito da Paz

Todos (Canto)

Shalom,
Sauidi,
a Paz!
A Paz de Deus,
na paz dos Homens.
O amor do Pai
entre os irmaos.

Todos os Povos num só Povo.
Porque o Senhor é nossa Paz.

Shalom,
a paz antiga.
Sauidi,
a paz perdida.
Em Cristo, a nova Paz!

Shalom, Sauidi, a Paz!



Comunhão

Todos (C)

Celebrando a Páscoa do Senhor
cantamos a Vitória
de toda a Humanidade.
Tribos de toda a Terra,
Povos de toda idade.
Na carne do Senhor
revive toda carne.
Por isso comungamos toda luta.
Por isso comungamos todo sangue.
Por isso comungamos toda busca
de uma Terra-sem-males.

Libertos do primeiro Cativeiro,
cantamos a Passagem.

Cantando atravessamos
o novo Mar Vermelho do teu Sangue.
Cantando comungamos
o Pão da Liberdade.

Cantando caminhamos à procura
de uma Terra-sem-males.

Celebrando a Páscoa do Senhor... etc.



Compromisso Final

Voz masculina (Voz masculina e voz feminina: recitado. Todos cantado)

Alimentados da Páscoa do Senhor
e na Esperança da Terra Prometida,
rejeitamos todas as cadeias e,
com os pés descalços sobre esta Terra nossa,
retomamos a marcha dos mortos redivivos.

Voz feminina

Com as claras estrelas dos Povos exterminados,
iluminamos a rota do ultimo Exodo,
buscando a Terra-sem-males.

Voz masculina

Como fogueiras ardendo no coração da noite,
a memória dos Povos perdidos
conduz o passo dos seus filhos.

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz feminina

Pelos Templos sem defesa saqueados,
por todas as Cidades destruídas,
pelos 90 milhões de índios massacrados.

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz masculina

Pelas ruínas do Império do Sol,
pelos Palacios Maias abolidos,
por todo o Povo Azteca escravizado,
pela desolação dos Sete Povos...

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz feminina

Pelo silêncio das flautas e tambores na noite,
pela morte da alma destes Povos,
pela palavra "resignação" dita aos escravos...

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz masculina

Pelo arcabuz dos bandeirantes e bugreiros,
pelos meninos escravizados,
pelas meninas defloradas,
pelas caravanas de moribundos rumo a São Paulo...

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz feminina

Pela peste que trouxemos no sangue depurado,
pelas lanças quebradas na humilhacão,
pelas cabeças cortadas dos Aymoré...

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz masculina

Pelas cercas farpadas dos novos bandeirantes,
pela cachaça integradora,
na boca dos guerreiros,
pelo açúcar servido com cianureto
no paralelo onze,
pela prepotência da Tutela e
o sarcasmo da Emancipação...

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz feminina

Pela cruz inscrita na espada dos saqueadores,
pela devastadora Civilização
que se pretende cristã,
pelas catedrais assentadas no coração
dos templos índios
pelo Evangelho da Liberdade,
feito decreto de cativeiro.

Todos

Memória / Remorso / Compromisso!

Voz feminina (Música de suplica confiada)
Todos (Cantado)

Morena de Guadalupe,
Maria do Tepeyac:
Congrega todos os índios
na estrela do teu olhar;
convoca os Povos da América
que querem ressuscitar.

Vozes individuais (recitado)

Montezuma!
Atau Walpa!
Tupac Amaru!
Sepé Tiaraju!
Toríbio de Mogrovejo!
Rosa de Lima!
Bartolomé de las Casas!
José de Anchieta!
Roque!
João!
Afonso!
Rodolfo!
Simão Bororo!
João Bosco!

Voz masculina

E todos os Patriarcas, Profetas e Mártires
da Causa Indígena!

Todos (Recitado)

Prosseguiremos vossa caminhada!

Todos (Canto Final)

Unidos na Memória
da Páscoa do Senhor
voltamos para a História
com um dever major.
Unidos na memória
da Antiga Escravidão
juramos a Vitória
na nova servidão.

América Amerindia,
ainda na Paixão:
um dia tua Morte
terá Ressurreição!

A Páscoa que comemos
nos nutre de porvir.
Seremos nos teus Povos
o Povo que ha de vir.

Os Pobres desta Terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã.

Uirás sempre a procura
da Terra que vira...
Maíra, nas origens.
No fim, Marana-tha!