2.000 ANOS DE JESUS, 20 ANOS DE ROMERO

-circular fraterna-


Neste "final" e "mudança" de século, de milênio, de "paradigmas", somos muitos, com diferentes tons e perspectivas, os que expressamos nossos sonhos pensando em uma nova sociedade, e também em uma Igreja nova. Há como uma espécie de ânimo coletivo sonhador, que se expressa, nos expressa, segundo necessidades ou interesses, mas que palpita impaciente na humanidade deste ano 2.000.

Em nível social, político, econômico, quer-se uma verdadeira mudança, e não apenas umas pinceladas de marketing. Em nível cristão -que não deixa de ser também social, político e econômico- trata-se do Jubileu, que deveria ser o verdadeiro Jubileu, o jubileu definitivo que Jesus de Nazaré proclamou, tempo de justiça para os pobres, era de libertação para a humanidade inteira.

Os "humanos" de hoje temos uns 35.000 anos de caminhada: tempo suficiente para aprender as grandes lições da história. Infelizmente, o poder neoliberal que impera hoje na humanidade se manifesta como uma suicida "exuberância irracional" da especulação, segundo Alain Greenspan, do todo-poderoso Banco Mundial. E outros altos mandatários desse Banco e do FMI acabam de reconhecer que "é preciso começar a levar em conta os pobres..." Já não se pode prescindir impunemente da maioria da humanidade!

Frente à morte da esperança que praticamente o sistema nos prega, o jubileu de Jesus se define a partir de sua proclamação em Nazaré como a libertação total dos pobres.

Fechando o século mais cruel da história, deixou-nos para ir à Casa do Pai Dom Hélder Câmara, insistindo na esperança. E no mundo inteiro a solidariedade vai sendo, não somente "o novo nome da paz", mas também o nome inevitável da sobrevivência.

 

 

O balanço da iniqüidade

As estatísticas e os balanços de sempre se multiplicam em revistas e na comunicação eletrônica. Continuam sendo, infelizmente, os de sempre. Mas agora, com o peso específico de um fim de época, fazendo memória e exigindo prognóstico.

Aproximadamente 4/5 da população mundial assistem à globalização mas dela não participam. Um bilhão e 300 milhões de pessoas devem passar com menos de um dólar por dia. Calculando a pobreza absoluta como uma renda inferior a 370 dólares por ano, a Ásia tem 778 milhões de pobres absolutos; a África, 398 milhões; e a América, 156 milhões.

Dos 4 bilhões e 400 milhões de habitantes dos países "em desenvolvimento", aproximadamente 3/5 não têm acesso a água limpa; 1/4 não tem moradia adequada; e 1/5 não tem serviços normais de saúde. Calcula-se que no novo milênio faltará água potável para 40% da humanidade, neste nosso planeta terra que é com mais razão "planeta água". Os Estados Unidos, por outro lado, com apenas 5% da população mundial, utilizam 25% dos recursos mundiais. Com ironia e razão, o sociólogo norte-americano Petras fala de "globalização ou império americano".

A dívida externa se tornou atual como notícia e como desafio. Essa dívida que, segundo o próprio papa, "ameaça gravemente o futuro das nações"; e que, segundo as Nações Unidas, faz 19.000 crianças morrerem a cada dia na África. Por outro lado, a África transfere para o Ocidente mais de 33 milhões de dólares diários.

O movimento "Jubileu 2.000" fez uma campanha no mundo inteiro exigindo que sejam anuladas as dívidas externas dos países pobres. Conseguiram-se 17 milhões de assinaturas. Pouco depois, correu pelo mundo a notícia alvoroçada de que os senhores do poder mundial iam cancelar parte dessas dívidas. A verdade é que o que vão cancelar é simplesmente de uns 25 bilhões de dólares, que equivalem a 1% da dívida total dos países de todo o Terceiro Mundo; porque o montante da dívida externa terceiromundista chega à apavorante cifra de 2 trilhões e 30 bilhões de dólares, e só 41 países poderão receber esse "generoso perdão".

Entre os balanços desoladores deste final de século e de milênio, é preciso sopesar amargamente o desemprego e o trabalho semi-escravo, a violência de todo tipo (sem esquecer, afirmava João Paulo II, que "a pobreza é a primeira violência") e o cínico armamentismo.

A "Minuta da Agenda pela Paz e a Justiça no Século XXI", que responde ao "Chamado de Haia pela Paz" proclamava que, "às vésperas de um novo século, é hora de criar condições nas quais o objetivo primordial das Nações Unidas -'salvar da guerra as próximas gerações'- possa ser realizado". Ainda pesam na consciência os 110 milhões de mortos das intermináveis guerras do século XX. Mas, ainda, somente na África, há 18 países envolvidos em guerras que afetam 180 milhões de pessoas. Em 70 países espreitam 119 milhões de minas semeadas, e somente em Angola, elas já produziram 100 mil mutilados. O exército mexicano, que em 1995 tinha 130 mil homens, agora tem mais 40 mil, sobretudo para impedir as mais que justas reivindicações dos povos indígenas de Chiapas. A administração Clinton atingiu o recorde de 21,3 bilhões de dólares de armamento exportado.

A maior parte das vítimas dessas guerras, hoje tão modernas e até virtuais, são, como lamentava Noam Chomsky falando do Timor Leste, "vítimas que não valem a pena".

"A irmã mãe Terra", como diria Francisco de Assis, está sendo brutalmente violentada. Seus produtos já não são naturais, são transgênicos. E só em nosso Brasil, durante um ano, foram derrubados 16.838 km2 de florestas. Na Amazônia se derrubou, por dia, uma média equivalente à área de 7 mil campos de futebol. Um quarto da superfície da terra está sob ameaça de desertificação.

A diretora do Programa Mundial de Alimentos, da ONU, reconhecia há pouco a incapacidade da própria ONU para resolver a "insegurança alimentar" nos próximos anos, o que quer dizer que entre 800 e 900 milhões de seres humanos -aproximadamente 20% da população mundial- estão condenados a morrer... de fome.

A superpopulação das grandes cidades já é muito mais que uma ameaça. Segundo o informe do PNUD de 1998, no ano 2015 o México terá mais de 19 milhões de habitantes, São Paulo mais de 20 milhões, Bombaim mais de 26, Xangai mais de 17, Buenos Aires mais de 13, Manila mais de 14 e Lagos mais de 24. Nos próximos 15 anos, portanto, 55% da humanidade viverá nas cidades, quando, no século XIX, só 5% da população mundial viviam nelas.

O AMI (Acordo Multilateral de Investimentos) não morreu; está se travestindo. Assim como não morreu ainda a Escola das Américas e se está cogitando uma Escola da África, que não é de hoje: das 53 nações africanas, 43 receberam treinamento militar dos Estados Unidos, e 26 delas eram nações não democráticas.

 

Ontem, digamos, em seu "manifesto comunista", Marx e Engels profetizavam lucidamente para nosso hoje neoliberal que "o poder estatal moderno não passa de um comitê executivo encarregado de gerenciar os negócios comuns da burguesia", do FMI, das transnacionais. Porque é necessário sempre recordar que, enquanto se paga a dívida externa, obedecendo aos ditames neoliberais, não se pagam as dívidas internas de nossos países. E os governos deixam de estar a serviço de seus povos para submeter-se a um verdadeiro império neoliberal apátrida.

Quando se propugna tão insistentemente um desenvolvimento sustentável, devemos entender dialeticamente, para todas as conseqüências da militância, que o atual modelo de desenvolvimento dos Estados Unidos e da Europa é não apenas social, econômica e ecologicamente insustentável, mas também eticamente iníqüo.

 

 

A memória subversiva

Vamos fazer verdade nossa memória, "e essa verdade será que não há esquecimento" (Mario Benedetti). Nem da vida, morte e ressurreição de Jesus, nem da história ambígua de sua Igreja, nem do clamor secular, crescente, inescutado, dos pobres da terra, nem de tantos e tantas testemunhas de sangue que nos convocam à fidelidade.

São 2.000 anos de Jesus e 20 anos de Romero. Duas datas que poderão parecer desproporcionais numa mesma epígrafe, porque Jesus é Jesus, e que, entretanto, se relacionam intimamente. Na América Latina, pelo menos, um bom jeito, e muito nosso, de celebrar o Jubileu da Encarnação e da Redenção, é celebrá-lo "à Romero".

 

Muito se está escrevendo, também, sobre a celebração do Jubileu. Começaram já há meses as grandes celebrações e se preparam outras ainda maiores. Não faltaram, entretanto, vozes oportunas que chamassem a atenção.

"No ano 2000, a opção pelos primidos como sujeitos -escreve Giulio Girardi- impõe-nos uma tomada de partido contra a interpretação triunfalista do Jubileu que o concebe como uma exaltação do cristianismo histórico. Esta opção exige uma reinterpretação do Jubileu como crítica severa não só à civilização ocidental, mas (também) ao modelo de cristianismo que sacrificou a opção pelos pobres à opção pelos impérios; crítica inspirada nas imprecações contra a religião do templo, lançada pelos profetas e sobretudo pelo próprio Jesus na instauração da época jubilar."

Naturalmente, cabem as celebrações, as romarias, o "júbilo" pela vinda de Deus em carne e em história à nossa terra humana. Mas deveriam ser realizadas sempre segundo a humildade e a kénosis dessa vinda. Dando ao Jubileu toda a substância bíblica que nos vem já dos profetas e que Jesus reabilitou definitivamente para que fosse um Jubileu total e universal: para que respondesse -essa é a grande finalidade- ao coração de seu Pai Deus, nosso Pai.

Teoricamente todos entendemos que o Jubileu, antes de tudo, deve ser voltar a Jesus de Nazaré, ao Jesus do Evangelho, à sua Causa, o Reino.

Para meu próprio exame de consciência e partilhando com tantos irmãos e irmãs que caminhamos juntos, ou que juntos deveríamos caminhar, eu destacaria concretamente:

 

• A redescoberta do Deus de Jesus, que é o Deus-Amor, Pai-Mãe de toda a família humana, una e plural. Um Deus capaz "de fazer sair das pedras filhos e filhas seus". Deus de todos os nomes, adorado em todas as religiões, presente de antemão e sempre em todos os corações humanos.

• Como conseqüência desta fé nesse Deus, uma autêntica fraternidade/sororidade universal, "na qual se reconhecerá que somos os discípulos" de Jesus.

• Mais além da lei, contra a lei, às vezes (e falo das leis civis e também das leis religiosas), o amor-justiça, o amor-solidariedade, o amor-misericórdia. Um amor parcial, porque parte sempre dos pobres, dos excluídos. Jon Sobrino acaba de lançar um volume de cristologia intitulado significativamente "A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas".

• A esperança vitoriosa, que se funda na cruz do Ressuscitado e que se traduz diariamente, em nível pessoal e em nível social, em uma fidelidade sempre coerente, em uma militância inclaudicável, em uma testemunhalidade sem arrogância mas sem medo, que vai até o fim, como foram tantos irmãos e irmãs mártires. Esperança vivida e celebrada "contra toda esperança", apesar de todas as claudicações e fracassos, "apesar de todos os pesares neoliberais e eclesiásticos", faz-me bem repetir.

 

Celebrar os 20 anos do bispo Oscar Arnulfo Romero, mártir em plena eucaristia, a 24 de março de 1980, em El Salvador, deve ser assumir a herança de Romero, as causas pelas quais ele deu a vida. Sua conversão aos pobres. Aquele Jubileu de três anos definitivos que ele selou com seu sangue. Suas atitudes de escuta, de acolhida, de profecia, de esperança, seu modo tão localizadamente fiel e tão politicamente conseqüente de ser pastor. O povo, amado, buscado, assumido pastoralmente, em suas angústias e suas reivindicações, o fez santo. E santo o vem declarando desde a sua morte-martírio, e como santo o venera sobretudo na catedral-catacumba de San Salvador. O verdadeiro processo de canonização do bom pastor Romero deve ser o processo da assimilação de suas causas e atitudes.

Neste final de século é interessante recolher a afirmação de Ludwig Kaufmann, em seu livro "Três pioneiros do futuro: cristianismo de amanhã":

"Três pioneiros da fé que olham cara a cara a realidade de seu presente respectivo..., que indicam um caminho para que nós possamos ser cristãos amanhã. João XXIII, que confiava que Deus continua atuando na história, que soube ler os sinais dos tempos e teve a valentia de colocar a Igreja no caminho do serviço à humanidade. Charles de Foucauld, inspirador da comunidade dos irmãozinhos (e irmãzinhas), que, em avanços sucessivos, buscou deixar para trás as fronteiras e os privilégios dos cristãos europeus. Oscar Romero, que se decidiu de maneira radical em favor dos pobres e chegou a ser mártir da Igreja dos oprimidos."

 

A opção profética

À luz dessas duas datas, e de suas exigências e esperanças, eu pessoalmente -e penso que com milhões de irmãos e irmãs desse sonhador coletivo anônimo- gostaria de ver as seguintes transformações (radicais) na Sociedade, nas Religiões, na Igreja:

 

1 - Como Sociedade, contestar eficazmente essa mundialização globalizada, de acumulação de lucro, de consumismo atordoado e de exclusão homicida, para construir a outra mundialização, a partir de uma atitude de mundialidade em tudo e cada dia. Contra "a especulação, investimentos especulativos andorinhas, privilégio da circulação de mercadoria sobre a circulação do trabalho, informação dispensável, darwinismo global", possibilitar "a transparência e abundância da informação, a circulação e aplicação das tecnologias, os investimentos produtivos, a universalização dos direitos humanos", "e enraizar estes direitos nas políticas locais de educação, saúde, comunicações, emprego" (Carlos Fuentes).

Como alguém sugeriu oportunamente, conjugar constantemente e em nível mundial os verbos "partilhar, participar, prevenir".

Um objetivo ineludível seria, evidentemente, substituir a ONU atual e suas instituições por outras que sejam mundiais de verdade, equitativamente, sem privilégios e sem cinismo. Para uma mundialidade "onde caibam todos" e todos os povos, também os povos indígenas, também os minoritários.

Já faz um certo tempo que se divulga a campanha pela reforma do banco Mundial. E se propugna a criação do Tribunal Penal Internacional. Em nossa Agenda Latino-Americana, que a partir do ano 2001 será "Latino-americana-mundial", apresentamos um ideário e algumas realizações concretas dessa mundialidade "outra". Há muitas propostas e ensaios que vão abrindo esse caminho; desde a reivindicação insistente da Anistia Internacional pela abolição da pena de morte no mundo inteiro (em um único ano se cometeram 1.625 execuções) até a criação do "Banco dos pobres".

Os países, evidentemente, deveriam ter seu Estado, soberano e servidor. As "comunidades econômicas" não existiriam para impor-se, mas para complementar-se. E sobrariam a Otan e seus cupinchas.

Auscultando profeticamente a situação de nossos povos da América Latina (de todo o Terceiro Mundo) e antecipando-se profeticamente à situação ainda mais dramática que o capitalismo neoliberal criou, Medellín denunciava: "Queremos ressaltar que os principais culpados da dependência econômica de nosso povos são aquelas forças que, inspiradas no lucro sem freio, conduzem à ditadura econômica e ao imperialismo do dinheiro" (2.9).

Como proposta alternativa deveríamos cultivar, em todos os níveis, uma cidadania espiritualmente internacionalista, a solidarização das respetivas identidades e a internacionalização efetiva da solidariedade.

 

2 - As Religiões deverão pôr-se de acordo, em nome do Deus da Vida, do Universo e da Paz, para o serviço comum das grandes Causas da Humanidade, se quiserem ser religiões humanas, expressões plurais, as mais profundas, da alma da mesma Humanidade. Essas Causas vitais que são a comida, a paz, a saúde, a educação, a moradia, todos os direitos humanos, os direitos dos povos e as exigências da ecologia.

Já se escreveu a "Carta das Religiões Unidas" e se realizou, no passado mês de dezembro, na África do Sul, o "Parlamento das Religiões do Mundo".

Todo fundamentalismo, todo proselitismo, toda prepotência na vivência da própria religião está negando-a, porque nega o Deus vivo que todas as religiões querem cultuar.

O macroecumenismo, adulto, dialogante, fraterno, passará a ser uma fundamental atitude de qualquer religião que mereça este nome. Desde a própria identidade, na abertura à pluralidade da adoração e da esperança. Seguindo o sábio conselho do sufi persa do século XIII:

"Como um compasso, temos um pé fixado no Islam, e com o outro viajamos dentro de outras religiões".

 

3 - A Igreja, para ser a Igreja de Jesus, deve colocar-se, exclusivamente, a serviço do Reino e abandonar um auto-serviço obsessivo.

Para isso, as Igrejas, sobretudo a Igreja Católica, devem abrir-se ao ecumenismo real... sem esperar o fim do mundo! E inculturar-se de verdade, por causa do Evangelho, nos diferentes povos e nas diferentes coordenadas históricas.

A revista "Foc Nou", da Catalunha, compilou uma série de propostas que respondiam à pergunta, tão atual: "Como deverão ser os cristãos do século XX?" Respigo aqui algumas dessas respostas, que muitos cristãos e cristãs, sem dúvida, fazemos nossas também:

"Com senso comum", "desprendidos de todo o supérfluo que nos invadiu", "convencidos de que Deus quer salvar a todos", "interpelados pela Humanidade de hoje", "os crentes da pós-cristandade", "fazendo causa vital das grandes causas da Humanidade", "com uma vital experiência do Deus dos pobres", "sem colocar medida ao amor de Deus", "mais fiéis ao Evangelho que submissos ao Vaticano", "com uma espiritualidade distante de todo integrismo", "pessoas que mantenham viva a esperança", "enquanto se espera um Vaticano III", "profunda e intimamente agarrados por Jesus", "com maturidade humana e de fé", "chispas do fogo abençoado na noite da Páscoa"...

Pensando já mais concretamente em nossa Igreja Católica, é preciso rever seriamente a corresponsabilidade e ministerialidade a partir de uma profunda revisão do exercício do papado e do poder de sua cúria. Digo isso não só eu, pobre de mim: dizemo-lo milhões, e vozes muito autorizadas o declararam abertamente. O cardeal Ratzinger, nos tempos de seu famoso livro "O novo povo de Deus", escrevia: "A Igreja necessita de homens com paixão pela verdade e pela denúncia profética. Os cristãos devem ser críticos inclusive frente ao próprio papa, pois determinado panegirismo faz um grande mal à Igreja e a ele".

O cardeal Etchegaray, na lição inaugural do encontro "Igrejas irmãs, povos fraternos", realizado em novembro último, em Gênova, falava do grande paradoxo proposto aos últimos papas, "conscientes de serem (como ministério de Pedro) o princípio da unidade dos cristãos e que (na realidade) se vêem como seu dramático obstáculo". "O ministério de Pedro -acrescentava o cardeal- que serve estruturalmente para promover a sinodalidade da Igreja, é também de natureza sinodal: sua função própria não o situa fora ou acima do colégio episcopal. O Papa não é de um grau superior ao episcopado, e tem suas raízes no mesmo sacramento que faz os bispos."

Por sua vez, o cardeal Martini, na Terra Santa, presidindo uma grande peregrinação, reconhecia que a Igreja Católica deve dar passos bem fundamentais para o ecumenismo, "entre eles, o modo de exercer o primado de Roma, que deve ser repensado". "De fato -recordava Martini o que tinha sido notícia mundial- o próprio Papa se declarou disposto a repensar e a escutar sugestões sobre a forma de exercício do primado".

A Igreja está pedindo perdão por muitos pecados seus ao longo destes dois milênios, mas continuamos sendo pecadores também hoje. Os Sínodos continentais que acabam de ser celebrados não foram precisamente sinodais; não responderam às necessidades e às contribuições das Igrejas de cada Continente. Os bispos japoneses, para citar um exemplo, insistiam em que "se considerasse sob uma nova luz a relação entre as Igrejas da Ásia e a Santa Sé", e especificamente pediam "um sistema de relações baseado na colegialidade e não no centralismo".

A reforma do papado e de sua cúria possibilitará -com o "automatismo" do Espírito e pelas expectativas da Igreja universal- outras muitas reformas em corresponsabilidade, em colegialidade, em inculturação, em legítimo pluralismo, em ministérios.

No Ecumenismo há algumas boas notícias, mas é tanto o caminho que falta percorrer que acabam sendo muito lentas e tímidas. O documento de Augsburgo, por exemplo, entre a Igreja Católica e a Igreja Luterana, chega depois de cinco séculos de incompreensões, para acabar dizendo que ambas as partes se complementam na inefável "Justificação"...

Urge que nos sintamos todos irmãos e irmãs "separados"; nós os católicos também. Urge entender o ecumenismo como um ir e vir ao encontro do único Evangelho de Jesus de Nazaré. E urge reconhecer as respectivas tradições, bem como reconhecer a legítima autonomia das Igrejas locais, e descobrir nessas tradições e nessa autonomia a ação do Espírito "que sopra onde quer" e que nos "vai manifestando a verdade completa". Urge animar os teólogos e teólogas, ao invés de espantá-los em seu serviço de sistematização da fé e abertura de horizontes. Lamentavelmente, "durante o último papado, uns 500 deles (e delas) foram silenciados de um modo ou de outro, pelo Vaticano".

Diante do mal-estar generalizado, frente à involução programada e à obsessão por decretar, definir e fechar a passagem, querer um novo Concílio Ecumênico -dentro da próxima década, sugere o cardeal Martini- não é nenhuma frivolidade eclesial.

Que para este novo milênio não se possa repetir a amarga definição que Rahner fazia da existência da Igreja fora da Europa, como "o fruto da atividade de uma multinacional que exportou a religião como um bem que não podia ser alterado e que foi levado a todas as partes através de uma cultura e civilização consideradas superiores".

Não é derrotismo amargo nem hipercrítica irresponsável. É amor à Igreja e sobretudo ao Reino. É esperança comprometida. O cardeal Franz König, na defesa que fazia, o ano passado, do Pe. Jacques Dupuis, teólogo do diálogo inter-religioso, desabafava assim, com emoção bem eclesial: "Não posso permanecer em silêncio porque meu coração sangra quando vejo falhas tão evidentes contra o bem comum da Igreja de Deus".

 

Programas fraternos

Dentro das muitas celebrações -mais acertadas, menos acertadas- e respeitando todos os gostos desde que sejam evangélicos, que respeitem a alma do Jubileu, quero destacar aqui, convidando ao mesmo tempo, alguns acontecimentos próximos que nos afetam visceralmente.

- Em San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, de 20 a 26 de janeiro se celebrará uma despedida-homenagem ao Tatic providencial, Dom Samuel Ruiz, com uma Semana de Teologia, entre outras manifestações.

- En San Salvador, de 19 a 26 de março, serão celebrados os 20 anos do martírio de nosso "São Romero da América". Entre outras atividades e celebrações, o Sicsal (Secretariado Internacional Cristão de Solidariedade com e da América Latina) realizará seu congresso.

- No Brasil dos 500 anos, mal contados, mal vividos política e economicamente, de 11 a 15 de julho, em Ilhéus, Bahia, terá lugar o 10º Encontro Intereclesial de CEBs, pelos "2.000 anos de caminhada" e como "Memória, sonho e compromisso".

- Em Belo Horizonte, de 24 a 28 de julho, será celebrado o Encontro Latino-Americano de Teologia 2000, organizado pelas Sociedades Teológicas do Brasil (Soter), da Argentina (SAT) e do Uruguai (SUT), mas com alcance continental.

- Na República Dominicana, de 1º a 7 de novembro, e com uma peregrinação ao Haiti, celebraremos a 3ª Assembléia do Povo de Deus (APD), um novo pequeno pentecostes macroecumênico.

- E aqui, dentro da Prelazia de São Félix do Araguaia, em Ribeirão Cascalheira, dias 17 e 18 de julho do ano 2001 (dois mil e um, atenção!) vamos celebrar comprometidamente a Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, por ocasião dos 25 anos do martírio de nosso padre João Bosco Penido Burnier.

 

"Nós somos o tempo", ponderava Santo Agostinho. Sejamos o Jubileu, com toda a nossa vida.

Um solene ciclo de conferências, celebrado neste último ano do século, se intitulava, ansiosamente: "Em busca do paradigma perdido". Nós, irmãos, irmãs, não perdemos o paradigma, certo?

 

Pedro Casaldáliga
No ano 2000
São Félix do Araguaia, MT, Brasil
araguaia@ax.apc.org