«O mundo tornou a começar»

Carta circular de 2002

 

 

 

Os comentários –cautelosos ou apocalípticos ou clarividentes- acerca da conjuntura, proliferam, nestes dias, nos meios de comunicação. Não vou repetir “o óbvio ululante”. O problema está em saber ler a conjuntura à luz dos sinais dos tempos, descobrindo causas, interesses, “efeitos colaterais”, jogos de vida ou morte para a família humana.

 

Os terrorismos, no plural

Creio, entretanto, que a toda a Humanidade e concretamente à Igreja, toca-nos tomar nota de urgência e assumirmos, corresponsavelmente, os desafios desta hora.

Começou um novo milênio, um tempo novo, que chamam de “uma mudança de época”. Nem tanto, precisamente, pelas torres gémeas do 11 de setembro; pois há muitos outros dias, muitas torres, e muitos terrorismos, antes e depois desse 11 de setembro. Quatro terrorismos, sem dúvida, é para destacar com o fim de podermos entender e julgar corretamente os atos terroristas e as guerras de terror, os terrorismos enlouquecidos e as sistemáticas guerras imperiais. Há um terrorismo individual, cometido por qualquer assaltante em qualquer esquina ou vereda; outro terrorismo, grupal, perpetrado por qualquer facção; o terrorismo de Estado, que por vezes é do Estado de cada país ou é dos prepotentes Estados imperialistas e colonizadores, sobre tudo do mais terrorista de todos eles, ao longo dos dois últimos séculos; e o terrorismo do Sistema, hoje de capitalismo neoliberal, que é o terror econômico e social para a maior parte da Humanidade, submetida à fome, à marginalização e ao desespero.

 

 

Os desafios desta hora

Três desafios, concretamente, deve assumir com ousadia profética e liberdade evangélica a Igreja de Jesus, para ser crível e evangelizadora hoje:

-a descentralização mundializada

-a participação corresponsável

-o diálogo solidário.

A mundialização, pela graça de Deus e pelo humano processo da história, é inevitável. E essa mundialização exige o reconhecimento dos vários mundos como povos, culturas, religiões, dentro de um só mundo humano; sem primeiro, sem terceiro, sem quarto. Esse reconhecimento reclama, para que seja real e não apenas escrito, a descentralização das instâncias de planificação e de decisão. O que deve ser exigido tanto à ONU e demais organismos mundiais como à Santa Sé e às cúrias eclesiásticas. Somente esta descentralização fará possível a participação corresponsável e efetiva dos varios povos e estamentos. Quem concretamente pede só a democratização da Igreja, está pedindo pouco demais. À Igreja deve se lhe pedir, e na Igreja devemos dar, mais do que democracia: vida fraterno-sororal, cogestão adulta, ministerialidade plural, liberdade evangélica.

O muito provado teólogo Juan Antônio Estrada declara lucidamente: “Hoje o catolicismo está lastrado com uma institucionalização que já não mais corresponde nem às necessidades atuais nem às exigências ecumênicas nem à sensibilidade dos fiéis. Também não conta com o consenso global da teologia, pois cada vez abundam mais as correntes e escolas que impugnam o modelo vigente e propõem mudanças a partir de um conhecimento renovado da Escritura e da Tradição”.

A propósito da participação adulta na Igreja, acaba-se de celebrar o Sínodo dedicado ao ministério episcopal. Um Sínodo que se supunha coroação de todo um serial de Sínodos por temas e até por continentes. A verdade é que este último Sínodo tem confirmado a decepção que o instrumento Sínodo vem provocando desde sua aplicação, por não ser deliberativo e decisório. Permito-me contestar fraternalmente a satisfação que o cardeal Ratzinger manifestava pelo curso dos debates deste último Sínodo: “Podia-se temer –diz o purpurado alemão- que o Sínodo se bloqueasse em torno às relações entre a cúria romana e os bispos, sobre os poderes da assembléia sinodal ou a estrutura das conferências continentais e nacionais, estrangulando deste modo a vida da Igreja”. O que estrangula a vida da Igreja é precisamente, senhor cardeal, a falta de revisão em profundidade das relações da cúria romana e os bispos, o modo de eleição dos mesmos, a restringida ministerialidade, a inculturação não efetivada, a inteira problemática da colegialidade e da corresponsabilidade. O fato de que tenham sido tão pacíficas e concordes as sessões sinodais poderia se dever à sistemática negativa de espaço oficial e à omissão resignada dos participantes. Talvez daria mais para um “nostra culpa” que para um “Te Deum” de ação de graças.

 

Felizmente, o Espírito e a Igreja continuam caminhando, e as bases se movimentam. A consciência e a prática de que “somos Igreja” não é apenas um movimento, é uma movimentação ao longo e largo de toda a Igreja de Jesus, que são as várias Igrejas que professam seu nome e anunciam seu Reino. Nunca como hoje, na prática e às vezes forçando barreiras, diferentes setores da Igreja e concretamente o laicato masculino e feminino têm sido tão livres e criativos, tão adultos e corresponsáveis, na leitura bíblica, no pensamento teológico, na liturgia, nos ministérios, nas pastorais, na ação social…

Estão crescendo, no mundo, um clamor e também uma ação em torno a um verdadeiro processo conciliar. Que continue e atualize e amplie o Vaticano II; que responda às grandes urgências eclesiais e às grandes expectativas da Humanidade, filha de Deus.

Essa mobilização das bases dá-se também em maior escala, dentro da Sociedade como um todo. Vão sendo cada vez mais os movimentos e ações de cidadania, cooperação, solidariedade; os vários fórums livres e alternativos à economia, ao pensamento e à política neoliberais, passando da simples contestação à proposta, da impotência à convocação eficaz.

 

Nesta hora kairós de mundialização e de maturidade de consciência, que é simultaneamente uma hora nefasta de novas prepotências, de macroditaduras, de fundamentalismos e de radicalizações, se impõe para nós, como um dom e como uma conquista, o diálogo, interpessoal, intercultural, ecumênico e macroecumênico. Um diálogo de pensamentos, de palavras e de corações. Não a simples tolerância, que se parece demais com a guerra fria, mas a convivência cálida, a acolhida, a complementariedade.

A queda das torres devería ser também a queda de umas escamas que embaçam os olhos do Ocidente cristão frente ao mundo árabe e musulmano. Desde esse 11 de septembro, tão publicitado como se fosse o maior terrorismo da história, o Ocidente, cristão ou não, está necessariamente obrigado a reconhecer que o mundo árabe e o Islã existem, e que o Islã congrega mais de um bilhão de fiéis de diferentes povos e culturas. Durante muitos séculos a Sociedade ocidental e a Igreja –sempre ocidental demais- têm sido preconceito, hostilidade e guerra com o Oriente musulmano.

Nossa Agenda Latinoamericana-Mundial de 2002 propõe, precisamente, como grande tema desta hora, “as culturas em diálogo”, e a Agenda’2003 proporá, concretizando esse tema, o diálogo inter-religioso: “as religiões em paz dentro de si e entre si, para a paz do mundo”; e a Agenda’2004, se Deus nos conceder ainda tempo de caminhada, estará dedicada, com espírito de conversão, aos “nossos respectivos fundamentalismos”.

A campanha contra o Banco Mundial, realizada em Barcelona durante o passado mês de junho, estruturava-se em torno a sete eixos de debate e ação, que abrangem amplamente os maiores desafios e prospectivas desta hora:

• democracia, participação e repressão

• direitos sociais e trabalhistas

• migrações

• direitos ecológicos, direitos ambientais, modelo agro-alimentar

• globalização e militarismo

• mulher e globalização

• globalização e desenvolvimento.

 

Mística para o caminho

Esses processos de mundança, que são sonho e missão, reclamam de todos nós, cristãos ou não, uma forte espiritualidade, uma mística de vida. Cada qual a viverá segundo a respectiva fé, porém sem essa espiritualidade não se faz caminho. Pensando nisso, e a raíz do retiro espiritual que celebramos todos os anos, a equipe pastoral da Prelazia à beira do Araguaia, naquele morro acolhedor de Santa Terezinha, eu resumia assim essa espiritualidade, tão nova e tão antiga, como sendo espiritualidade de:

Contemplação confiada. Abrindo-se mais gratuitamente ao Deus Abbá, que é, por autodefinição suprema, misericórdia, amor. Uma contemplação mais necessária do que nunca nestes tempos de eficiências imediatas e de visibilidades. Confiada, digo, porque tenho a impressão de que volta – o quiçá nunca foi embora- a religião do medo, do castigo, da prosperidade ou do fracasso, segundo como a gente se haver com Deus. Falta-nos, pois, confiança filial, infância evangêlica, a descontraida liberdade dos pequenos do Reino.

Coerência testemunhante. Tem-se repetido até a saciedade que vivemos na civilização da imagem, que o mundo quer “ver”. O testemunho foi sempre uma espécie de definição do ser cristão. “Vocês serão minhas testemunhas”, dizia Ele por toda recomendação, por todo testamento. E esse testemunho, hoje mais do que nunca, quando tudo se vê e tudo se sabe, tem de ser coerente, sem fisuras, na vida pessoal e na gestão estrutural da Igreja (que poderá ser a Igreja Católica ou uma Igreja Evangélica, o Vaticano, uma diocese, uma congregação religiosa, uma comunidade). Veracidade e transparência pede o mundo, tão submetido à mentira e à corrupção.

Convivência fraterno-sororal. A isso se reduz o mandamento novo. Este é o desafio maior e o mais cotidiano para as pessoas, para as comunidades, para os povos. Conviver, não coexistir apenas; conviver carinhosamente em fraternura e sororidade; não apenas em tolerância mútua. Ajudar a tornar a vida agradável. Ser “sal da terra” deve significar isso também.

Acolhida gratuita e serviçal. Capacidade de encontro e de diaconia. Não somente descer do burro e atender o caído quando por casualidade a gente o encontrar à beira do caminho, mas se fazer encontradiço. Acolher ás vezes somente com uma palavra ou com um sorriso, porém acolher sempre, gratuitamente. Fazer de todos os ministérios e de todas as profissões aquele serviço desinteressado e generoso que nos propunha aquele Senhor que não veio a ser servido mas a servir. É mais facil celebrar uma eucaristia ritual que exercer um lava-pés engajado.

Compromisso profético. Continua a ser a hora, e talvez mais do que nunca, de se comprometer proféticamente contra o deus neoliberal da morte e da exclusão e em favor do Deus do Reino da Vida e da Libertação. É preciso sugar da fé toda a sua força política. Viver a fé militantemente, transformadoramente; fazer da profecia uma espécie de hábito conatural -fruto específico do batismo para os cristãos e cristãs-, de denúncia, de anúncio, de consolação. A caridade socio-política é a caridade mais estrutural. Vai às causas, não somente aos efeitos. Cuida a Vida. Transforma a História. Faz Reino.

Esperança pascal. Depois da “morte de Deus” e da “morte da Humanidade”, nesta posmodernidade facilmente sem sentido, e já no “final da história”, parece que a esperança não tem muito a fazer. Hoje, mais do que nunca, se impõe a esperança! Ela é a virtude dos “depois de”. “Contra toda esperança” (produtivista, consumista, imediatista, pasiva), esperamos. Devemos proclamar humildemente, porém sem complexos, nossa esperança pascal e escatológica. E devemos torná-la crível aquí e agora. Porque esperamos, agimos. O tempo e a história são o espaço sacramental da esperança.

 

Aquí, em casa

Dentro de casa, na Prelazia de São Félix do Araguaia, 2002 significa um ano de “transição”. Oficialmente, o último ano de “mandato” (oxalá tenha sido de serviço) do primeiro bispo desta prelazia. Isso nos conova a uma revisão e também a afirmarmos, modestamente mas conscientemente, as linhas fundamentais da nossa pastoral. Depois de vários anos de experimentação, acabamos de aprovar o “Manual da Prelazia de São Félix do Araguaia – Objetivo, atitudes, normas”. Uma espécie de diretorio espiritual e pastoral, breve porém denso, que recolhe o objetivo da nossa Igreja, as atitudes maiores que devemos cultivar e uma série de normas que configuram a estrutura e a ação desta Igreja particular de São Félix do Araguaia.

Evidentemente fazemos questão de recordar que, ”bispo-indo-bispo-vindo”, a Igreja continua. Sonhamos, então, com uma continuidade livre e criativa. O mesmo Povo, o mesmo Evangelho, o mesmo Brasil da América Latina. A mesma Igreja de Jesus, que é também para nós a de Medellín…

E a dos Mártires. Nos dias 14 e 15 de 2001, celebramos no Santuário dos Mártires da Caminhada Latinoamericana, em Ribeirão Cascalheira, a grande romaria aniversário dos 25 anos do martírio do Pe.  João Bosco Penido Burnier. Com o lema que resume esses sonhos cristãos de nossa pequena Igreja e deste bispo de fim de linha: “Vidas pelo Reino”. O mantra, que Zé Vicente nos musicou e que já se canta por esse Brasil afora, expressa sentidamente o que com o lema queriamos dizer:

“Vidas pela Vida,

vidas pelo Reino,

todas as nossas vidas,

como as suas vidas,

como a vida d’Ele,

o mártir Jesus”.

 

Na região da Prelazia, como em todo o Brasil, toca-nos viver um ano de elições. Para presidente, governadores, senadores e deputados, federais e estaduais. Os nomes e os dados estão no ar, e os interesses e as intrigas também. As forças da direita, as eternas oligarquias, a elite privilegiada e por isso mesmo conservadora, conchavam, aparentemente divididas, confluindo porém em última instância quando se tratar de assegurarem o poder. As direitas, pelos seus interesses, têm o don da união; as esquerdas, pelas suas tendêdncias, têm o nefasto carisma da divisão. Assim e tudo, acho que cresceu a consciência política do nosso povo e a vontade de mudança. A crua realidade diária de desemprego, de carestia, de corrupção e violência, grita. Há muito movimento popular andando, muitas expressões de cidadania e as pastorais sociais estão enraizadas e ativas no país. Mesmo quando devamos admitir que ainda, na hora de votar uma mudança mais ou menos radical, os pequenos não podem e os grandes têm o poder do dinheiro e dos meios de comunicação. Faça, porém, ou não faça o povo seu predidente popular, votar é indispensável, e o povo pode fazer senadores e deputados. Ir transformando as Assembléias Legislativas e o Congresso Nacional é uma das maiores urgências políticas do Brasil.

 

Para “uma terra sem males”

A Campanha da Fraternidade de este ano 2002 é uma bela convocatória à luta e à esperança. “Fraternidade e Povos Indígenas” é o tema. Com o lema do mito fundamental do povo guaraní: “Por uma terra sem males”. É pedir muito, mas é o que Deus quer e é o que nós necessitamos. Como lembrávamos na última Assembléia Nacional do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), essa “Terra sem males” deve se traduzir sobretudo numa “economia sem males”, numa democracia sem os males do privilégio e da exclusão, numa sociedade participativa, solidária, livre e fraterna. Num mundo novo, que é possível e é necessário.

 

Que “o mundo tornou a começar” poderá soar à muita utopia. E é muita utopia mesmo. Porém, com muito fundamento. “Sabemos em Quem confiamos”. O Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) adota e adapta, em sua última felicitação de Natal, a palavra do jagunço arrependido, Riobaldo, para cantar “à criança nascida de Maria que enche de esperança o coração de todos e nos leva a proclamar: Minha Senhora Dona! Um menino nasceu, o Mundo tornou a começar!”. Aí Riobaldo, o CEBI e esta carta circular estão de acordo com a promessa de Deus: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5)

 

 

 

Pedro Casaldáliga

bispo de São Félix do Araguaia, MT, Brasil

araguaia@ax.apc.org