PASSAR FAZENDO CAMINHOS
circular fraterna abril 2004


   
    
 

As cartas e as mensagens de solidariedade têm se acumulado, no coração, nas pastas e no computador, e reclamam faz dias uma merecida resposta. Minha e de toda a nossa Igreja de São Félix do Araguaia. Para todas as pessoas e entidades que nos vêm acompanhando, com tanto carinho, nestes meses de ansiedades. Como é bom, cantamos com o salmo, sentir sobre a vida o óleo da comunhão fraterna!
Eu esperava poder responder com notícias concretas, tanto sobre o problema dos indígenas Xavante como sobre a chegada de um novo bispo à Prelazia. Mas “as coisas de palácio vão devagar”, na Sociedade e na Igreja. A causa Xavante está nas mãos da lenta Justiça, de audiência em audiência, de laudo em laudo, enquanto as famílias Xavante esperam, postadas à margem da estrada, faz meses. A sucessão episcopal, por sua vez, está-se fraguando no secretismo dos recôncavos canônicos. “Que surrealista é tudo isso!”, ponderava um jovem solidário.

Novidades?
Nos dias 2 e 3 de março, aniversário da vitória dos posseiros sobre a fazenda Codeara, celebramos em Santa Terezinha, com muita unção, o 25 aniversário da morte pascal do Pe. Francisco Jentel, “testemunha do Evangelho, defensor do Povo do Araguaia, pioneiro do verdadeiro progresso em nossa região”. Em nome do CIMI e da CPT, acompanhou-nos Dom Franco Masserdotti, presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário.

Além das ameaças já conhecidas que nos têm rondado ultimamente, o Pe. Geraldo Magela Ribeiro, redentorista, foi agredido fisicamente em plena rua de Confresa, por seu empenho pastoral em combater a corrupção.

Toda a região da Prelazia viu-se afetada pelas enchentes, com muitas famílias desabrigadas e cortadas todas as estradas que dão acesso a vários municípios. Levamos 35 anos andando por “maus caminhos”!
Por esse mundo afora, a ditadura macroeconômica, a globalização neoliberal, vem fracassando na hora de resolver os problemas maiores da fome, da violência e do desemprego. Espalha-se o pessimismo no planeta, segundo a pesquisa da Gallup, realizada para o Fórum Econômico Mundial de Davos. A grande maioria humana acha que a próxima geração viverá num mundo menos seguro e que seu respectivo país é menos próspero hoje do que 10 anos atrás. (O que não impede que subam as bolsas e que os operadores e banqueiros recebam lucros substanciosos...). Oportunamente o Secretário Geral da ONU, Kofi A. Annan, recordava aos países “mais privilegiados” que há outro terrorismo mais estendido e escandalosamente tolerado (e produzido sistematicamente): “as ameaças mais familiares da pobreza”.

Há muitos conflitos ignorados, muitos são os mortos que não aparecem na televisão e são muitos os dias 11, além do 11 de setembro e o 11 de março. Mais de 10 milhões de crianças morrem cada ano por doenças evitáveis. “Cada 7 segundos morre de fome uma criança menor de 10 anos. Cada uma dessas mortes é um assassinato”, afirmava Jean Ziegler, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação. África é um verdadeiro holocausto silenciado. A política e os meios de comunicação continuam sendo manipulados pelos poderes econômicos e a desinformação a serviço desses poderes prolifera sistematicamente num mundo super-informatizado. Os incipientes governos de esquerda, em Nossa América, se consomem entre os propósitos e a impotência.

Também na Igreja (nas Igrejas) alastra-se um certo pessimismo, manifestado em encontros mais ou menos marginais e em reivindicações impacientes. Sente-se o peso das “reformas” posconciliares de involução, o final de um longo pontificado, a multiplicação de documentos e controles, a co-responsabilidade sempre pedida e prometida, porém só muito simbolicamente outorgada. Chamou-me a atenção saber que se convocava, em Einsiedeln, um segundo encontro “para os leigos desiludidos com a Igreja”. É, um pouco a velha cantilena, atualizada: Deus sim, Cristo não; Cristo sim, Igreja não; Igreja sim, hierarquia não; hierarquia sim, mas outra. Um compreensível mal-estar no religioso institucional.
E, entretanto, a vida se move. E a esperança continua a ser um bem comum, patrimônio histórico e escatológico da Humanidade. “Tudo é comum, inclusive Deus”, afirmava Beaudelaire; sobretudo Deus, poderíamos corrigir ao poeta. E nessa “comunidade” do Deus comum vamos sendo, apesar de todos os pesares neoliberais ou fundamentalistas, a grande comunidade humana, mais livre, mais solidária, mais fraterna.

O diálogo também se move. E se move em direção à Justiça. Dentro do Fórum Universal das Culturas, que se celebra em Barcelona, realiza-se o terceiro Parlamento das Religiões do Mundo, com o lema de fundo “Caminhos para a paz: a sabedoria da escuta, a força do compromisso”. Acabo de ler um livro de Christian Duquoc, “Cristianismo, memória para o futuro”. Evidentemente, para que seja uma memória honesta para o futuro, terá de ser um compromisso sério com o presente. “O futuro nos corresponde aos de baixo”, proclamava numa entrevista Rafael Alegria, Secretário Internacional de “Vía Campesina”. Eu gosto de repetir que “somos pobres, / porém somos / maioria e o futuro”. Frente a todas as “alcas” neoliberais e imperialistas, e alongando quanto for possível a mira e a coerência, “nós propomos a Alba”: alma nova, tempo novo; o outro mundo possível, necessário, urgente.
Nestes dias me acompanhavam, como um ritornelo, tal vez por isso da velhice e da aposentadoria, aqueles versos de Antonio Machado, cantados por Serrat:

“... pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar”.

Com o carinho e o respeito que o grande Antônio merece, hei de corrigi-lo em sua angustiada visão: “passar fazendo caminhos”... sobre a terra, mestre!. Morreu, no ano passado, o poeta Martí i Pol, uma espécie de Machado catalão, que nos advertia com humano realismo que “dificilmente caminharemos / com os olhos voltados para cima”. Sobre a terra, então, os olhos, os pés e as mãos; mesmo ancorando os corações no Céu. Com uma bem-humorada humildade e com pragmatismo histórico. Sabendo, com Brecht, que “é preciso mudar o mundo” e que “depois terá que mudar o mundo mudado”. Mas sabendo, sobre tudo, que o Amor tem a última palavra. María Pilar, uma mãe que perdeu seu jovem filho nos atentados de Madri, escreveu em sua carta pública: “Somos mais os que amamos”, e, entre esses mais, está Deus.

 

 

Pedro Casaldáliga
São Félix do Araguaia, MT, Brasil
abril 2004